CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO E A TEORIA DO TÍTULO EXECUTIVO - Cândido Rangel Dinamarco

Cândido Rangel Dinamarco
Professor Titular da USP,
Desembargador Aposentado do TJSP.

SUMÁRIO: 1. Uma convicção amadurecida; 2. A tipicidade do título executivo e a liqüidez do crédito; 3. A indispensável suficiência do título; 4. As declarações do correntista; 5. A jurisprudência evoluiu. 


1. UMA CONVICÇÃO AMADURECIDA


Sempre sustentei que o contrato de abertura de crédito em conta corrente não se insere entre os títulos executivos judiciais do direito brasileiro; eles não são especificamente arrolados como tais e também não se enquadram no conceito de documento privado, contido no inciso II do art. 585 do CPC, uma vez que não contêm a indicação do valor devido. Tudo quanto nestes tópicos se dirá constitui a demonstração dessa tomada de posição, de resto já acatada em cheio pela jurisprudência superior do país. Tomo a liberdade de reportar-me seguidamente a escritos meus sobre o tema, o que faço com o objetivo de demonstrar minha velha e amadurecida convicção em torno do que em seguida vou dizer.

2. A TIPICIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO E A LIQÜIDEZ DO CRÉDITO

A probabilidade da existência de um direito suscetível de ser satisfeito em via executiva é o fundamento político sobre o qual repousa a instituição de títulos executivos. Seria uma arbitrária truculência submeter o patrimônio de um sujeito aos rigores das constrições judiciais, sem o respaldo de uma suficiente demonstração de que o sedizente credor é realmente credor e de que o titular do patrimônio seja realmente o titular da obrigação correspondente. Como é notório, tal probabilidade é sentida pelo legislador, ao qual cabe (a) tipificar no direito positivo os atos jurídicos dignos de figurar no elenco dos títulos hábeis à execução forçada e (b) indicar os requisitos do próprio ato e do direito que ele representa, para que a execução seja admissível. Não se admite a execução apoiada em suposto título que não conste dos elencos postos em lei, nem se admite quando o ato, posto que tipificado no direito positivo, não se revestir dos requisitos indicados (refiro-me de modo especial ao pressuposto da liqüidez do crédito, de interesse para a presente exposição).

A probabilidade da existência do direito, suficiente para legitimar uma execução forçada, no direito brasileiro advém de dois fatores, aos quais o legislador tem sido bastante fiel e que são (a) ou o prévio reconhecimento do direito por ato estatal idôneo, produzido segundo os cânones do devido processo legal, (b) ou o reconhecimento da obrigação pelo próprio obrigado. A primeira hipótese é representada principalmente pela sentença condenatória civil (CPC, art. 584, I), a qual é o fruto acabado de um processo de conhecimento, de caráter jurisdicional, em que o juiz, cumprida toda uma instrução e admitidos todos a participar em contraditório, concluiu que a obrigação existe; outro ato estatal reputado idôneo e suficiente para embasar a execução é inscrição da dívida ativa dos entes estatais tributantes (art. 585, V), a qual só pode ser eficaz se produzida após regular contraditório e oferta de reais oportunidades de defesa (a ampla defesa e o contraditório são garantias constitucionais que vão além dos processos judiciais e abrangem também os administrativos - CF, art. 5º, LIV e LV).

Na outra vertente encontram-se os títulos executivos que só são tais porque neles existe um ato de reconhecimento da obrigação, celebrado pelo próprio sujeito que se diz obrigado. Dos títulos executivos extrajudiciais arrolados no vasto elenco do art. 585 do CPC, têm essa característica fundamental as cambiais em geral, os documentos públicos e particulares com os requisitos ali indicados, o contrato de hipoteca, etc. Não há um só título executivo, judicial ou extra, sem o prévio contraditório perante autoridade estatal competente e sem o formal reconhecimento da obrigação pelo sujeito. 1 

Mas a idoneidade do reconhecimento judicial ou voluntário da obrigação deve ser associada à prévia indicação das dimensões desta, sem o que não há parâmetros para executar com seriedade e sem excessos. Refiro-me ao requisito da liqüidez das obrigações. Executar sem uma prévia indicação do valor significaria reduzir a praticamente nada a exigência do reconhecimento judicial ou voluntário, porque não se sabe se o juiz ou o obrigado teriam ou não a intenção de reconhecer aquele valor que depois veio a ser atribuído à obrigação pelo credor. Daí a severíssima exigência da liqüidez, formulada e reiterada solenemente pelo CPC (arts. 586 e 618, I).

3. A INDISPENSÁVEL SUFICIÊNCIA DO TÍTULO

É também inerente à disciplina dos títulos executivos a exigência de que a liqüidez da obrigação decorra dos próprios dizeres do documento em que ele se consubstancia, sem a necessidade de buscar aliunde elementos para a determinação do valor devido. Essa exigência liga-se a um raciocínio básico, inerente à teoria da execução e do título executivo, que é a supressão de qualquer verificação pelo juiz do processo executivo, no tocante à existência e montante da obrigação. Cabe ao legislador a especificação e tipificação dos atos que terão a eficácia de título executivo e ao obrigado (em caso de título extrajudicial), a indicação do quantum debeatur - sem que o juiz tenha o poder de examinar outros documentos e, com base neles, estabelecer a quantidade de unidades monetárias correspondente à obrigação reconhecida. Os procedimentos executivos são montados sobre essa central premissa sistemática, não dispondo de fases ou momentos destinados ao conhecimento e decisão judicial quantificadora do crédito. Estamos falando do que LIEBMAN denomina eficácia abstrata do título executivo. Na lição do Mestre,"a eficácia abstrata reconhecida ao título é que explica seu comportamento na execução; aí está o segredo que o torna o instrumento ágil e expedido capaz de permitir a realização da execução sem depender de qualquer demonstração da existência do crédito." 2 

Desse modo e por esse motivo, tem-se por absolutamente pacífico que inexiste título perfeito e suficiente quando faltar ao ato ou documento exibido aquele requisito substancial indispensável, que é a liqüidez. Como dito, a indicação do valor deve ser feita pelo mesmo sujeito que afirmou a existência do crédito - ou seja, pelo juiz na sentença ou pela parte no ato de reconhecimento da obrigação - sob pena da ausência da idoneidade e probabilidade que legitimam o título como requisito necessário e suficiente, sendo conseqüentemente inadmissível a execução forçada.


4. AS DECLARAÇÕES DO CORRENTISTA

Os contratos de abertura de crédito são celebrados para que a instituição financeira ponha à disposição do correntista, sempre que preciso, o numerário eventualmente faltante para a cobertura de cheques, dentro dos limites ajustados pelas partes. No momento de contratar, o correntista não declara nem reconhece a existência de débito algum, simplesmente porque nesse momento o valor devido é zero: só no futuro é que, à medida em que os aportes à conta vierem a ser feitos, surgirão débitos para um e créditos para outro.

Em conseqüência disso, tais contratos não podem ser assimilados ao conceito de título executivo. Consideradas as exigências de tipicidade e liqüidez, estudadas acima, a primeira delas pode estar presente, desde que esses contratos são consubstanciados em documento particular e ordinariamente assinados pelas partes e duas testemunhas instrumentárias; mas a segunda delas, a liqüidez, não há. Os demonstrativos feitos pela instituição financeira são atos seus e não daquele a quem competia fazer o reconhecimento da dívida e do valor, que é o correntista. Por mais idônea que fosse a demonstração feita em lançamentos contábeis, ainda assim esse não é um ato do obrigado e, portanto, não satisfaz aquele fundamento mais profundo da eficácia dos títulos executivos, que é a suficiente probabilidade da existência do crédito.

5. A JURISPRUDÊNCIA EVOLUIU

Quando fui Juiz do 1º TAC deste Estado, fiquei fragorosamente vencido em um incidente de uniformização de jurisprudência sobre o tema da executividade dos chamados cheques especiais, optando a significativa maioria dos juízes daquela Casa pela tese contrária à que sustentei e sustento (21 votos contra 10). 3 A tese então vitoriosa chegou inclusive a ser consagrada pelo STF. Cifra-se ela assim: "o contrato de abertura de crédito, feito por estabelecimento bancário a correntista, assinado por duas testemunhas e acompanhado de extrato de conta corrente respectiva, é título executivo extrajudicial".

Depois a jurisprudência se inverteu. Em um significativo acórdão conduzido pelo voto do Ministro EDUARDO RIBEIRO, no ano de 1993, o STJ assim se pronunciou: "o contrato de abertura de crédito não constitui título algum, por não conter declaração por meio da qual alguém se obrigue a pagar quantia determinada". 4 O 1º TA manteve por muito tempo o ponto de vista de antes, chegando a afirmar em súmula a executividade dos contratos de abertura de crédito (Súmula nº 11, 1º TACSP), mas no STJ firmou-se a linha que venho preconizando; inclusive sua 3ª Turma, que durante algum tempo ainda resistiu a essa tendência, em tempos mais recentes, chegou também a esse ponto. Depois disso, o próprio Tribunal paulista foi revendo sua posição e hoje, embora sem unanimidade, ali prevalece a tese que venho sustentando.

Chegou também a esboçar-se uma tese conciliatória, segundo a qual ter-se-ia a executividade quando o contrato dessa natureza estivesse acompanhado de demonstrativos do valor, produzidos pelo banco credor (conclusão n. 8 do IX Encontro dos Tribunais de Alçada do Brasil, realizado aos 29-30.08.1997); 5 essa tese é, contudo, vigorosamente repelida pela jurisprudência atual do STJ, que em repetidos acórdãos proclama em voz uníssona a unilateralidade das contas e lançamentos feitos pelo credor como óbice intransponível a essa suposta executividade. Expressivo voto do Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA diz incisivamente:


"mesmo subscrito por quem é indicado em débito e assinado por duas testemunhas, o contrato de abertura de crédito não é título executivo, ainda que a execução seja instruída com extrato e que os lançamentos fiquem devidamente esclarecidos, com explicitação dos cálculos, dos índices e dos critérios adotados para a definição do débito, pois esses são documentos unilaterais de cuja formação não participou o eventual devedor." 6 

Esse pensamento foi expresso em um julgamento da 2ª Seção daquele tribunal e não por uma de suas Turmas, o que significa que ele revelou o pensamento majoritário entre os integrantes de ambas, ou seja, da 3ª e 4ª Turmas do Tribunal (Seção de Direito Privado). Ao falar na unilateralidade de um documento produzido pelo próprio credor, aqueles qualificados julgadores estão a acatar a idéia de que a eficácia dos títulos extrajudiciais negociais se legitima no reconhecimento, pelo devedor, não só da existência do crédito mas também do seu valor; tal é o fundamento central de tudo que venho sustentando a respeito. 7 

Quando o banco dispuser de um contrato escrito (e portanto consubstanciado em um documento) e também dos documentos indicativos do valor a que chegou o crédito no decorrer da execução do contrato, com fundamento nesses documentos ele terá a sua disposição a via do processo monitório (CPC, art. 1.102-a), como em mais de uma oportunidade proclamou o Ministro BARROS MONTEIRO. 8 Essa é uma solução intermediária legítima, ditada pela própria lei e com o mérito de agilizar a tutela jurisdicional postulada pelo demandante, sem pôr em risco o patrimônio do demandado. Uma coisa é penhorar para depois discutir, impondo a este o risco de uma imobilidade patrimonial possivelmente injusta, e coisa diferente é chamá-lo a pagar mediante o mandado de entrega e permitir que se defenda, no processo monitório, sem que ainda tenha sido exercida qualquer constrição sobre seu patrimônio.

Em reconhecimento à força desse pensamento em ascensão, em fevereiro do ano de 2000, o STJ completou o ciclo de evolução de sua jurisprudência a respeito, quando sumulou: "o contrato de abertura de crédito, ainda que acompanhado de extrato da conta corrente, não é título executivo". A Súmula nº 233, expressa nesses termos, pôs uma pá de cal no assunto e agora, como incisivamente informa THEOTÔNIO NEGRÃO, "a questão acha-se pacificada no STJ". 9

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