TÓXICO: PORTE DE SUBSTÂNCIA X PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - Eduardo Carraro Rocha

Advogado em Franca/SP e
Mestrando em Direito Público pela Universidade de Franca.

"Além de previsto, o princípio da insignificância, juntamente com todo o aparato político criminal, é o que realmente dá validade à lei penal de porte de entorpecente, que desprovida disso carece de aplicação por patente invalidade."


Há algum tempo, em nossa sociedade, vem-se discutindo tema acerca do exacerbado crescimento do consumo e tráfico de substâncias entorpecentes. Essa questão desperta, e com razão, grande interesse da opinião pública, tendo em vista que desencadeia sérios problemas sociais, com acepções diversas. A sociedade assiste pasmada a uma deturpação física e comportamental, principalmente dos jovens, incluindo a disseminação direta de violência, conseqüências da contaminação do ambiente de uso e tráfico de "drogas".
Perante tal contexto, inevitável e indiscutível reconhecer a carência de tutela penal frente à inibição do consumo e tráfico de drogas. Entretanto, cumpre salientar que esse controle social, aplicado diretamente ao âmbito da realidade das substâncias entorpecentes, deve pautar-se sob parâmetros seguros da melhor aplicação do direito penal, em sua feição mais moderna e evoluída.


Seguramente, pode-se dizer que grande quantidade das questões de porte de substâncias entorpecentes, levadas ao crivo do Judiciário, são marcadas pela ínfima quantidade de entorpecente que compõe o corpo de delito, principalmente em se tratando de cannabis sativa. Aponta-se como exemplo grotesco dessa informação caso em que um representante do MP denunciou uma pessoa pelo porte de 0,3 grama de cannabis sativa, isto é, 3 decigramas da substância. E em casos como esse, os Defensores apontam como principal argumento de ampla defesa o tão falado princípio da insignificância.


Porém, na grande maioria das vezes, os Defensores, ao invocarem o princípio da insignificância, recebem respostas, tanto dos Magistrados quanto dos representantes do MP, de duas naturezas: negação direta do reconhecimento do princípio por entenderem que não há insignificância; ou afirmação que "tal causa não incriminadora não está prevista em nosso ordenamento jurídico positivo". E desde já salientamos nossa total discordância em relação a essa assertiva, buscando fundamento nos ensinamentos de brilhantes doutrinadores da atualidade.


Com efeito, antes de mais nada, cumpre-nos "derrubar" o mito da não-aplicação do princípio da insignificância "por não estar previsto em nosso ordenamento jurídico pátrio".


Levando em conta a evolução do direito penal no decorrer de sua existência, entende-se que a assertiva ora combatida é fruto de um já superado positivismo jurídico, residente no âmbito da escola clássica.


Posteriormente, superando o movimento da escola clássica, encontramos no caminho os ideais neokantistas, que já traziam uma carga valorativa na análise da tutela penal, fato recusado pelos defensores do não-reconhecimento do princípio da insignificância por sua "não-previsão no ordenamento jurídico pátrio". Porém, mesmo encontrando valor na escola neokantista, esse movimento não é exatamente onde se busca fundamentação para o presente estudo, tendo em vista que o neokantismo foi marcado por seu relativismo axiológico, com abertura ilimitada do referencial do valor, em uma axiologia aberta e desmedida.
Da mesma forma, não se busca fundamentação na acepção mais radical do finalismo de WELZEL, que com seu método onto-fenomenológico extraiu as chamadas estruturas lógico-objetivas, e passando para um método dedutivo de lógica material aplicou seu pensamento na teoria do crime. E a razão crucial para não se buscar a fundamentação no radical finalismo de WELZEL se encontra dentre as várias críticas efetuadas sobre sua teoria. Entretanto, tendo em vista que o propósito do presente estudo não suporta indagações prolixas, aponta-se somente uma crítica, qual seja, a da rigidez e petrificação da ontologia de suas estruturas lógico-objetivas, desprovidas de carga axiológica e de adequação insuficiente frente à realidade social dinâmica em que se vive.


Sendo assim, o fundamento para o presente estudo reside literalmente nas chamadas teorias pós-finalistas.


Essas teorias são marcadas pelo resgate do ideal de valor insculpido no neokantismo, porém especialmente com o cuidado essencial de não se renderem ao relativismo axiológico próprio da época.


Assim, a realidade das teorias pós-finalistas nos remete a uma necessidade principal, qual seja, a de fixar o valor a ser aplicado. Para encontrarmos esse valor, nada mais óbvio que nos voltarmos para a estrutura tridimensional do Direito anunciada por REALE. Com efeito, encontramos em REALE um trinômio dinâmico consubstanciado no valor, no fato e na norma.


A norma, vista como estrutura do Direito, quando entendida sob um enfoque jurídico penal, corresponde exatamente à dogmática jurídico penal, sem se esquecer de sua ligação com o aspecto vigência. Seguindo neste raciocínio, tem-se que o fato corresponde literalmente à criminologia, atrelada ao aspecto eficácia. E finalmente encontra-se o valor, o mesmo buscado pelas teorias pós-finalistas. E o valor, concebido dentro da teoria tridimensional do direito aplicada à tutela penal, corresponde exatamente à idéia de validade, entendida sob a égide da política criminal.


Por este prisma, entende-se que a política criminal é o valor a ser agregado à construção e interpretação da norma jurídico penal. Podemos, outrossim, citar o que o ilustre e brilhante jurista luso FIGUEIREDO DIAS, após esclarecer a hodierna ampliação da função do direito penal como fruto da dialética "sistema" e "problema", nos ensina:


"(...) foi precisamente o alargamento que acabo de referir da função da dogmática jurídico-penal que permitiu à política criminal não somente reforçar a sua posição, já adquirida, de 'autonomia', mas ganhar uma posição de 'domínio' e mesmo de 'transcendência' face à própria dogmática." 1 (grifo nosso)
Portanto, no contexto exposto, constata-se que a política criminal é pressuposto de validade da norma penal, estando dentro desse conceito exatamente a norma expressa no art. 16 da L. 6.368/76. E o princípio da insignificância, como ver-se-á, é instrumento da política criminal. Não deve, desta maneira, ser admitido o inconcebível referencial de que o princípio da insignificância não pode ser aplicado por "não estar previsto no ordenamento jurídico pátrio".


Além de previsto, o princípio da insignificância, juntamente com todo o aparato político-criminal, é o que realmente dá validade à lei penal de porte de entorpecente, que desprovida disso carece de aplicação por patente invalidade. Nesse contexto, é inevitável concluir que repleto de razão está o brilhante ROXIN, quando contrariando LISZT entende pela aplicação da chamada "ciência global do direito penal" em uma análise político-criminal e criminológica sempre atreladas à dogmática penal. 2 

Levando em conta a imprescindibilidade da política criminal para a validade da norma, seja no aspecto de sua incidência sob toda a teoria do crime (ROXIN), e/ou em seu transcendentalismo frente à dogmática penal (FIGUEIREDO DIAS), mister se faz delinear qual o entendimento político-criminal do crime previsto no art. 16 da L. 6.368/76.


Partimos do conceito de política criminal apontado por LISZT, como sendo "o conjunto de estratégias através das quais o Estado enfrenta o crime".
Com efeito, é indiscutível a eminente função de controle social exercida pelo direito penal, e isso também ocorre na questão "porte de entorpecentes", na medida em que pugna-se pela diminuição do porte dessas substâncias, cujos malefícios já foram apontados no início do estudo. Entretanto, da mesma forma, forçoso concluir que o controle social exercido pelo direito penal em relação ao porte de entorpecente está condicionado a vários aspectos.


Primeiramente, cumpre salientarmos a posição indiscutível do direito penal como ultima ratio. E essa posição faz com que o direito penal se ocupe da tutela dos chamados bens jurídicos fundamentais, ou interesse nesses mencionados bens jurídicos, como pretendem alguns autores. 3 


Nunca é demais lembrar que, segundo o já invocado moderno entendimento que depõe em prol da incidência da política criminal diretamente nos elementos da teoria do crime (ROXIN), a identificação do bem jurídico deve vir insculpida já na análise do tipo. E isso se conclui até mesmo se levarmos em conta o finalismo, que em sua versão mais ortodoxa invoca a necessidade tanto do desvalor da "ação" como do "resultado", sendo este o perigo ou lesão ao bem jurídico fundamental, como entendem KAUFMAN, CEREZO MIR, HIRCH e REGIS PRADO. E esse último ilustre e citado autor nos traz ensinamento de MAURACH e JESCHECK, marcado pela idéia da função teleológica ou interpretativa do bem jurídico, e com o qual condiz a conclusão almejada pelo presente estudo: "Tem-se que o bem jurídico constitui 'o núcleo da norma e do tipo. Todo delito ameaça um bem jurídico ... Não é possível interpretar, nem portanto conhecer, a lei penal, sem lançar mão da idéia de bem jurídico'. Assim, o bem jurídico 'é o conceito central do tipo, em torno do qual giram os elementos objetivos e subjetivos e, portanto, um importante instrumento de interpretação'". 4


Tomando-se por base a incidência da política criminal, diretamente focada na interpretação do tipo penal em seus elementos estruturais, cabe conceituarmos o princípio da insignificância como ausência da chamada "adequação social", tal qual prelecionava o próprio WELZEL.


Para seu melhor entendimento, deve-se levar em conta a já mencionada subsidiariedade da sanção penal, concentrada na relevância dos bens jurídicos a serem tutelados, mais especificamente no caráter significativo ou não da lesão ou perigo a que os mesmos estão expostos. Nesse sentido, precisamente nos ensina ASSIS TOLEDO:


"Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico." 5


Ademais, acrescente-se a essa lição que o analisado princípio pode ser postado tranqüilamente na condição de elemento de política criminal, pois influencia a interpretação do tipo penal no sentido de analisar a lesão ou não do bem jurídico, fato esse de estreita ligação com a constatação da necessidade ou não de controle social pelo direito penal, questionamento intimamente ligado à política criminal.
Porém, não bastasse a já constatada necessidade de fixação do bem jurídico como forma de interpretação do tipo penal, tem-se que polêmica ainda reinante no mundo doutrinário penal versa acerca da conceituação do que vem a ser bem jurídico. Mesmo diante dessa anunciada polêmica, ROXIN assevera ser irrelevante qualquer discussão, tendo em vista que, frente aos novos critérios de aplicação constante da política criminal, as anteriores definições de bem jurídico se mostram inidôneas.


Desta feita, para ROXIN, uma visão de bem jurídico deve abarcar tanto finalidades úteis para os indivíduos como um todo, bem como deve salientar os deveres de cumprimento das normas criadas pelo direito. Neste esteio, o mencionado autor salienta que "(...) los bienes jurídicos son circunstâncias dadas o finalidades que son útiles para el individuo y su libre desarollo en el marco de un sistema social global estructurado sobre la base de esa concepción de los fines para el funcionamento del proprio sistema". 6 E, ainda, dentro dessa abordagem focada, inevitável atestarmos o consenso entre a doutrina e a jurisprudência no sentido de que o bem jurídico tutelado pela L. 6.368/76 é a Saúde Pública, que segundo DE PLÁCIDO E SILVA, "é a expressão usada para indicar o estado de sanidade, ou o estado fisicamente são, da população de um país, de uma região ou de uma cidade". 7


Conseqüentemente, aplicando os ideais político-criminais em borbulhante influência na conceituação do bem jurídico, conforme ensina ROXIN (funcionalismo racional teleológico), esclarece-se que o bem jurídico Saúde Pública corresponde à preservação da integridade salutar da sociedade, no que diz respeito à sua exposição como um todo ao ambiente margeador da droga (tráfico), bem como aos dejetos químicos e expositivos oriundos de sua posse (porte).


Reconhecidos esses aspectos, já é plausível a interpretação do art. 16 da LT quando a quantidade da substância é ínfima.


Buscamos em ZAFFARONI e PIERANGELI 8 fácil e preciso processo de análise do tipo penal em sua construção e interpretação. Os citados autores demonstram que a construção e a interpretação do tipo penal ocorrem com os mesmos elementos, só que em uma dinâmica de ordem invertida.


Precipuamente temos a construção do tipo penal, onde o legislador parte do bem jurídico a ser tutelado, no caso a Saúde Pública, passa para a construção da norma penal, consubstanciada na "não-ofensa à saúde pública", e finalmente chega ao tipo penal, qual seja, o porte de entorpecente (art. 16 da LT). Entretanto, para a interpretação do tipo penal, como se pretende fazer no presente estudo, é necessário inverter o processo.


Assim, partimos do cidadão que porta quantidade ínfima de substância entorpecente. Num aspecto inicial de análise, invocando uma ficção positiva e vazia do tipo, conclui-se que a conduta do cidadão é perfeitamente aplicável aos parâmetros do art. 16 da LT. Passando para a norma, percebe-se que ela tem seu cunho legitimado, qual seja, o de proibir a ofensa à Saúde Pública. Porém, chega-se ao ponto crucial, qual seja, a análise do bem jurídico, isto é, a própria Saúde Pública.


E nesse exato momento, especificamente na análise do bem jurídico protegido pela norma, é que nos utilizamos do instrumento de política criminal denominado princípio da insignificância, constatando que não há ofensa ao bem jurídico fundamental em questão. Isso porque a quantidade ínfima de substância não é suficiente para lesar nem mesmo o agente que a esteja portando.

 Entretanto, mesmo admitindo-se que a ínfima quantidade de entorpecente lese o agente, o fato é que não há exposição da sociedade como um todo à periclitação da saúde. Não há exposição do entorpecente a um número indeterminado de pessoas, nem sequer há variação física nas condições normais de ambiente. Inexiste, portanto, lesão ou perigo ao bem jurídico fundamental Saúde Pública, objeto da tutela jurídico-penal.


Dessa forma, conclui-se que não havendo lesão ou perigo ao bem jurídico fundamental, como ocorre no caso do porte de quantidade ínfima de substância entorpecente, em uma aplicação evidente do princípio da insignificância, não há razões político-criminais para o enquadramento típico da conduta do autor. E assim sendo não há valor, como vislumbramos acima. Conseqüentemente, não deve haver incidência do tipo penal, sob pena de invalidade da sanção eventualmente aplicada.


O entendimento aqui buscado, como percebe-se pelo teor do estudo, somente pode ser concebido mediante uma aceitação da política criminal como de extremada necessidade dentro da estrutura jurídico-penal. E essa aceitação é totalmente inconcebível e inconciliável frente ao jargão corriqueiramente ouvido e anteriormente repudiado, qual seja, o de que não se pode aplicar algo (ex.: princípio da insignificância) que "não esteja previsto no ordenamento jurídico positivo". Portanto, nada mais oportuno que encerrarmos o estudo com brilhante trecho escrito por ROXIN:


"De todo o exposto, fica claro que o caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas político-criminais introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsibilidade, as interações harmônicas e as conseqüências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nada à versão formal-positivista de proveniência lisztiana. Submissão ao direito e adequação a fins político-criminais (Kriminalpolitische Zweckmabigkeit) não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que Estado de Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade dialética: uma ordem jurídica sem justiça social não é um estado de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito." 9 

 


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