O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E A LEI DO INQUILINATO: PROPOSTAS PARA A SOLUÇÃO DO CONFLITO NORMATIVO FRENTE À NOVA TEORIA CONTRATUAL - Henrique Alves Pinto - Neiva Flávia de Oliveira

Henrique Alves Pinto

Aluno do 5º ano da Universidade Federal de Uberlândia da Faculdade de Direito Jacy de Assis.

Neiva Flávia de Oliveira

Professora no curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia,
Mestre e doutoranda em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 



SUMÁRIO: Resumé; Resumo; Introdução; 1. Da natureza da Locação; 2. Orientações Gerais do Direito Contratual - Novos aspectos da Teoria Contratual; 3. Inclusão dos Contratos de Locação não Comercial no Campo de Aplicação do CDC; 4. Critérios para a Aplicação do CDC e da Nova Lei do Inquilinato; Conclusões; Bibliografia.


Resumo
Este trabalho apresenta uma análise dos principais aspectos no que diz respeito às relações de consumo, o da importância do conhecimento dos conceitos de "consumidor" e "fornecedor", aplicando-os na resolução dos conflitos entre normas gerais e normas especiais no domínio científico do direito intertemporal, no caso específico do conflito existente entre o Código de Defesa do consumidor brasileiro e da nova Lei do Inquilinato, publicada em 1991. 

INTRODUÇÃO 


Antes de se iniciarem as discussões propostas sobre este artigo, faz-se necessário, conceituar "consumidor" e "fornecedor" em relação à sistemática da Lei nº 8.078/90, essenciais à aplicabilidade do CDC no âmbito da Lei do Inquilinato, de acordo com a nova teoria contratual.

Com a aprovação do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), em seu art. 2º definiu-se o termo consumidor como " toda pessoa física e jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final." Por sua vez, no art. 3º o termo fornecedor aparece como:

"toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços."
Fundamentando-se nestes conceitos, percebe-se que a tutela ao consumidor, aspecto inerente à pessoa humana, rompe com o Código Civil ao se estabelecer nos seus próprios princípios e normas, os quais são dotados de autonomia científica e dogmática, em decorrência da falta de especificidade do Código Civil no tratamento da relação de consumo.


Apesar da análise desse trabalho estar voltada ao conflito entre a Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, e a nova Lei do Inquilinato, 8.245/91, nunca é suficiente o bastante saber que a legislação consumerista foi construída sob a égide dos valores esculpidos pela Constituição Federal, baseados em princípios e regras nucleares de ordem pública.


Assim, ao se reconhecer tais princípios, a legislação consumerista quer intimidar práticas abusivas de empresas produtoras, empresas intermediárias, prestadoras de serviços, dentre estas as Imobiliárias - que será um dos pontos aqui abordados - entre várias espécies de fornecedores dos mais diversos ramos do setor empresarial, a partir do momento em que coloca à disposição dos consumidores um novo instrumento jurídico (reitere-se o Código de Defesa do Consumidor) em suas mãos no intuito de promover com mais força a sua defesa.


Basicamente, o que aqui se pretende demonstrar é que, presentes os componentes da relação de consumo, será o contrato regido pela eficácia do Código do Consumidor.


1. DA NATUREZA DA LOCAÇÃO 


Por sempre haver gerado controvérsias sobre a inclusão do contrato de locação residencial no campo de aplicação do CDC, analisar-se-ão alguns aspectos deste contrato, no intuito de se aprofundar a discussão doutrinária e jurisprudencial acerca do tema.

Assim, inicia-se o exame dos contratos celebrados com as chamadas Imobiliárias, empresas administradoras e locadoras de imóveis.


No tocante ao contrato de administração de imóvel, segundo a professora Cláudia Lima Marques (2002, p. 361), "o proprietário que coloca o imóvel seu sob a administração da Imobiliária, não pode ser caracterizado como consumidor stricto sensu, pois não é o destinatário final econômico", isso se dá porque a rentabilidade destas locações está sendo empregada em outras atividades comerciais do proprietário, ou seja, neste caso, ele não seria o destinatário final.


Poderá, entretanto, ocorrer um caso de exceção, se demonstrado que o proprietário, ao colocar seu imóvel sob administração da Imobiliária, estiver de alguma maneira "vulnerável" segundo a principiologia do CDC, e, por isto, merecedor da tutela especial da lei consumerista.


Exemplo que ilustra a hipótese dá-se quando o dono do imóvel for o destinatário final desta prestação de serviços oferecida pela Imobiliária, ou seja, quando a rentabilidade das locações de seus imóveis for destinada à sua sobrevivência e não para o desenvolvimento de outra atividade negocial. Por conseguinte declarada estará a relação de consumo entre o dono dos imóveis e a Imobiliária, quando esta administra os bens daquele.


Passe-se, a seguir, à análise da relação contratual mais importante neste estudo, que é o contrato de locação de imóvel. No que se refere à locação comercial, a aplicação do CDC não será cabível, uma vez que o locador deste tipo de imóvel não o utiliza como destinatário final, como por exemplo, local de sua moradia. Neste caso, estará utilizando o imóvel para auferir lucros por meio de atividade comercial que, neste local, ele venha a exercer.


Mas, referindo-se à locação residencial, segundo a professora supra citada, "a aplicação do CDC será a regra" (MARQUES, 2002, p. 361). Dessa maneira, parte minoritária da jurisprudência concorda, in verbis:


TARS, Ap. Civ. 195049630, j. 29.08.1995, Rel. Alcindo Gomes Bittencourt, cuja ementa é: "Ação Civil Pública. Tem o Ministério Público legitimidade para propor ação visando a proteção do consumidor. A relação intermediária de imóveis para a locação submete-se às disposições do Código Defesa do Consumidor. Cláusulas de contrato de adesão cuja nulidade se reconhece. Inaplicabilidade da Lei nº 8.078, de 11.09.1990, aos contratos firmados anteriormente à sua vigência. Recurso parcialmente provido".


Assim, percebe-se que tanto a nova do Lei do Inquilinato, 8.245/91, quanto o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.098/90), aplicam-se aos contratos de locação, desde que verificados os componentes de uma relação de consumo (fornecedores e consumidores), uma vez que, a locação nas grandes cidades, é tratada como contratos de adesão elaborados pelas Imobiliárias, já nas pequenas cidades são tratadas como contratos de locação paritários que são negociados com cada inquilino. Ressalte-se também que se o contrato de locação foi elaborado antes da vigência da Lei nº 8.098/90, o Código de Defesa do Consumidor, afastar-se-á aplicação desta legislação, uma vez que no momento da elaboração do contrato não existia tal regulamento.
Posição similar é a de Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin (1991, p.251):


“É de grande a importância da aplicação do CDC aos contratos de locação em virtude de sua relevância social e de extrema vulnerabilidade fática, que se encontra o indivíduo ao necessitar alugar um imóvel para sua moradia e de sua família, tal vulnerabilidade aliada a um mercado de oferta escassa, parece incentivar práticas abusivas, na contratação (cobrança de taxas abusivas, por ex.) e na elaboração unilateral dos contratos; o fenômeno é mundial.”


Neste caso, deve o indivíduo estar revestido da proteção delegada pelo Código de Defesa do Consumidor, para se proteger dos abusos cometidos pelo mercado imobiliário, como por exemplo, as imobiliárias que de posse do contrato e, muitas vezes sem a real anuência do locador, modificam e aditam termos dos contratos ao violar os preceitos da boa-fé (conceito que será discutido posteriormente neste trabalho), deixando o consumidor extremamente vulnerável. Além deste caso, note-se também que as imobiliárias em algumas ocasiões monopolizam determinadas áreas do espaço urbano na prestação de seus serviços, o que gera uma diminuição na concorrência do mercado fazendo com que o consumidor fique exposto ao abusivos preços cobrados por estas incorporações, por não oferecer ao consumidor opções mais viáveis dentro setor imobiliário. Portanto, não basta apenas que o consumidor se atenha da proteção do código das relações consumeristas, mas também que o Ministério Público, enquanto órgão incumbido de exercer a defesa dos cidadãos, fique atento a todos indícios que possam levá-lo a crer que determinados setores do mercado, neste caso o imobiliário, esteja corroborando para a concentração deste setor da economia enriquecendo ilicitamente ao praticar abuso econômico sobre a parte mais vulnerável que é o consumidor.
A despeito dessas posições, a professora Cláudia Lima Marques (2002, p. 362), na nota 295, clama ainda pela pesquisa da reação do direito alemão, na tese de Doutorado de Tübingen, de Thomas Lang, Die Anwendung des AGB - Gesetzt auf Formularmietverträge und deren Inhaltskontrolle, Tübingen, 1987. Conclui ainda a notável jurista (MARQUES, 2002, p. 362) que:


"Apesar do STJ considerar que a lei especial de locação trataria de todos os aspectos da proteção do consumidor nos contratos de locação, veja como exemplo desta linha majoritária da jurisprudência, as seguintes decisões: ' Civil - Locação. Fiança - Renúncia do Direito a exoneração - Multa contratual - Redução - Código de Defesa do Consumidor.. 2. Não se aplica às locações prediais urbanas reguladas pela Lei nº 8.245/91, o Código do Consumidor. 3. Recurso Especial conhecido e provido. (STJ, Resp 266625/60, 5.º Turma, Rel. Min. Edson Vidigal, j. 26.09.2001' e 'Processo Civil - locação - ... Multa contratual - Redução de 10% para 2% - Aplicação do Código de Defesa do Consumidor - Impossibilidade - Recurso especial conhecido e desprovido. I - .... III - O Código de Defesa do Consumidor não se aplica às relações locatícias, descabendo na espécie, com apoio nesta norma, vindicar a redução da multa - contratualmente pactuada entre as partes -, de 10% para 2%. IV - Recurso especial conhecido, mas desprovido.' (STJ, Resp 302603/SP, 5.º Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 06.04.2001)', permaneço defendendo a posição contrária, de que ambas as leis se aplicam a este contrato, tratando de temas diversos, dialogando e, eventualmente, afastando-se em caso de antinomia. Mister, porém, que se identifique na relação de locação uma relação de consumo.

 Algumas decisões do STJ expressamente mencionam que não consideram dadas estas condições, veja como exemplo desta linha a ementa: 'Locação - Fiador - Acordo para reajuste de aluguel. Súmula 214/STJ. 'O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu' as características delineadoras da relação de consumo apontadas nos arts. 2.º e 3.º da Lei 8.098/90. - O Código de Defesa do Consumidor, no que se refere à multa por inadimplemento, não é aplicável às locações prediais urbanas. Recurso parcialmente provido.' (STJ, REsp 204244/MG, 5.º Turma, Rel. Min. Felix Fischer, j. 11.05.1999)."


Como foi demonstrado acima, a de que existe um entendimento por parte do STJ em não aceitar a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor nas relações locatícias residenciais urbanas, segue-se aqui a orientação da professora Cláudia Lima Marques, a de que uma vez identificado os componentes da relação de consumo, consumidor e fornecedor, nas locações residenciais urbanas, deverá ser aplicada tanto a Lei 8.098/90, o Código de Defesa do Consumidor, quanto a Lei 8.245/91, nova Lei do Inquilinato, uma vez que esta, no momento de sua elaboração foi totalmente baseada na principiologia contida naquela. Além de que, na lacuna da lei especial, esta deve ser orientada pelos ditames da lei geral, caso do Código de Defesa do Consumidor, que é uma lei geral de ordem pública que tem como um dos seus princípios basilares a proteção genérica a todos os contratos desde que declarados os componentes de uma relação de consumo (reitere-se, consumidor e fornecedor). Portanto não há como se admitir o afastamento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações locatícias residenciais urbanas quando regidas pela nova Lei do Inquilinato de acordo com o entendimento do STJ, uma vez que ambas leis necessitam do contato normativo entre elas para a resolução das antinomias que possam nos surgir nos mais variados casos. 


Assim, para encerrar-se, este tópico, da natureza da locação, tem-se que com o desenvolvimento dos mercados, e no caso em questão, o Imobiliário, nota-se cada vez mais a massificação dos contratos, que "passam a ser pré-elaborados unilateralmente pelas empresas" (MARQUES, 2002, p. 589), o que contribui para a geração de um desequilíbrio marcante nas relações consumeristas, no que implicará ao Estado uma ação protetora para com as partes contratuais mais vulneráveis.


Comunga também, do mesmo pensamento Jacques Ghestin (apud MARQUES, 2002, p. 590) ao dissertar que:


"Ce developpement est d´ailleurs commun à des nombreaux pays, spécialment en Europe occidentale et en Amérique. Partout il permet des abus au détriment de celui que donne son adésion et conduit á une recherche des moyens permettant de protéger ce dernier." Traduzindo temos: "Este desenvolvimento é, aliás, comum a numerosos países, especialmente na Europa Ocidental e na América. Por toda parte ele permite os abusos em detrimento daquele que dá sua adesão e conduza uma pesquisa dos meios permitindo proteger este último."

Portanto, nada mais justo, nas locações residenciais urbanas, uma vez declarada a relação de consumo, a aplicação do código de Defesa do Consumidor, no intuito de reequilibrar esta relação ao dar maior transparência nestas modalidades contratuais. 


2. ORIENTAÇÕES GERAIS DO DIREITO CONTRATUAL - NOVOS ASPECTOS DA TEORIA CONTRATUAL


Com a modernização dos mercados, tem se notado ultimamente uma tendência inovadora que introduz algumas transformações nos dogmas da Teoria Contratual das quais tratam o contrato como um instrumento jurídico dotado de uma concepção social, para a qual, segundo Cláudia Lima Marques (2002, p.175):


"não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância."


Apesar do conceito da autonomia da vontade ter evoluído enormemente, ou seja, a prerrogativa conferida aos indivíduos de criarem relações na órbita do direito, desde que se submetam às regras impostas pela lei e que seus fins coincidam com o interesse geral, ou não o contrariem, "esse princípio clássico, inspirado no Código Francês, de que o contrato faz lei entre as partes é posto hoje na berlinda." (VENOSA, 2003, p. 375).


Desaparece aí "o liberalismo que colocou a vontade como o centro de todas as avenças." (VENOSA, 2003, p. 375). Todavia, deve-se saber que, a liberdade de contratar nunca foi totalmente livre porque sempre encontrou obstáculos, nos limites impostos pela ordem pública.


Será pela busca do equilíbrio contratual, ou nos dizeres de Fernando Noronha, da justiça social, que este chama de (1994, p. 215):


"(...) justiça contratual será, portanto, uma modalidade de justiça comutativa. Se a justiça costuma ser representada pela balança de braços equilibrados a justiça contratual traduz precisamente a idéia de equilíbrio que deve haver entre direitos e obrigações das partes contrapostas numa relação contratual."
na sociedade de consumo moderna, que "o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade." (MARQUES, 2002, p. 175).


A lei terá como importante papel, a proteção de determinados interesses sociais, ao valorizar a "confiança depositada no vínculo, as expectativas e boa-fé das partes contratantes." (MARQUES, 2002, p. 175). Com menção expressa do art. 4º, inc. III, do CDC à "boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores", como princípio básico das relações de consumo - além da proibição das cláusulas que sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade (art. 51, inc. IV) -, daí nota-se que o Direito das Relações de consumo são informados pelo princípio geral da boa-fé, que deve reger toda e qualquer espécie de relação consumerista, seja pela forma de ato de consumo, de contrato de consumo, de negócio jurídico de consumo, etc.

Assim será a boa-fé, de acordo com o pensamento do jurista Silvio Rodrigues (2002, p. 60), "um conceito ético, esculpido nas idéias de proceder com correção, com dignidade, da boa intenção com o objetivo de não prejudicar ninguém."


A tradicional concepção da autonomia da vontade, da que "o acordo de vontades faz lei entre as partes" (VENOSA, 2003, p. 376) na qual decorre o princípio da intangibilidade do contrato, em que "não pode o juiz intervir nesse conteúdo" (VENOSA, 2003, p. 376), estão atenuadas, no que disserta Cláudia Lima Marques (2002, p.175-176), "para que os particulares auto-regulem suas relações será reduzido por normas imperativas, como as do próprio Código de Defesa do Consumidor", a partir do momento que o Estado se fortalece ainda mais, ao ter uma legislação própria para "dar aos mais fracos uma superioridade jurídica para compensar a inferioridade econômica." (VENOSA, 2003, p. 376).(até aqui)


Nasce aí então, uma nova vertente de contrato no Estado Social, em que, segundo Cláudia Lima Marques (2002, p. 176), "a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar elemento estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o interesse social."


Assim com o intervencionismo estatal cada vez mais crescente nas relações contratuais, com o objetivo de amenizar a força da autonomia da vontade ao estender maior proteção à ordem social, com a criação de um novo parâmetro, o princípio da boa-fé objetiva, estabelecido pelo art. 422 do Novo Código Civil in verbis: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé." Será o contrato, segundo Cláudia Lima Marques (2002, p. 176), "instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo, mas, assim como o direito de propriedade, agora limitado e eficazmente regulado para que alcance a sua função social."


Portanto, será dessa nova peculiaridade do direito, que o contrato não deverá ser mais visto como um livre instrumento para o exercício das vontades criadoras das partes. E com a vigência do Novo Código Civil brasileiro, ao dizer que, a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, (art. 421), esta deve ser vista, "como instrumento basilar para o movimento das riquezas e para a realização dos interesses legítimos dos indivíduos." (MARQUES, 2002, p. 222), ao exigir que o contrato seja regrado legalmente com bastante energia.


São destes aspectos, brevemente apresentados, que o Código de Defesa do Consumidor surge como o mais amplo grupo de "normas cogentes, editado com o fim de disciplinar as relações contratuais entre fornecedor e consumidor, segundo os postulados da nova teoria contratual." (MARQUES, 2002, p. 222).


3. INCLUSÃO DOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO NÃO COMERCIAL NO CAMPO DE APLICAÇÃO DO CDC


É de grande relevância que, mesmo não se tratando de relação de consumo, as regras de proteção contratual sejam ao contrato de locação aplicáveis, de acordo com o que dispõe o art. 29 do Código Defesa do Consumidor in verbis: "Para os fins deste Capítulo e do seguinte equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas."
Este ponto é claro, sobretudo no plano da existência, validade e eficácia do contrato.


As regras que estabelecem situações diversas da generalidade dependem sempre de estar em destaque no contrato, sob pena de não vincular o locatário consumidor. E, nesta situação, deverá ser aplicada sempre a proteção contratual genérica incidente sobre todos os contratos, de acordo com o já citado art. 29 do CDC.


Essa afirmação encontra aporte em Cláudia Lima Marques (2002, p.364):
"A regra é a inclusão dos contratos de locação não comercial no campo de aplicação do CDC, o qual, como norma de ordem pública, estabelece valor básico e fundamental de nossa ordem jurídica. As mais variadas relações, entre o locatário, o locador, a imobiliária, o condomínio e sua administração, formam uma série de relações contratuais e interligadas que desafiam a visão estática do direito." 


Por se tratar de contrato de longa duração, a locação e suas relações jurídicas acessórias necessitam de cuidadosa análise, sob o prisma da sua nova teoria contratual, ao admitir a existência de obrigações principais e obrigações conexas para as partes envolvidas, seja a rede de fornecedores diretos ou indiretos, seja o consumidor. 


4. CRITÉRIOS PARA A APLICAÇÃO DO CDC OU À NOVA LEI DO INQUILINATO 


A Lei nº 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, impõe-se à lei especial anterior (Lei nº 6.649/79) e à lei nova (Lei nº 8.245/91); observemos o que postula Diniz (2001, p.75), " a norma geral não revoga a especial, nem a especial revoga a geral, podendo com ela coexistir ('Lex posterior generalis non derrogat speciali', 'legi speciali per generalem non abrogatur'), exceto se disciplinar de modo diverso a matéria normada, ou se a revogar expressamente (Lex specialis derrogat legi generali)." Logo, no caso de "conflito" dessa natureza prevalecerá a norma geral.


Em relação ao conflito entre as duas leis anteriormente mencionadas, a Lei nº 6.649/79 e a Lei nº 8.245/91, que disciplinam a mesma matéria, aplicar-se-á o critério cronológico que prevê "lex posterior derogat legi priori, de duas normas do mesmo nível ou escalão; a última prevalece, sobre a anterior." (DINIZ, 2001, p. 73).


Já no conflito normativo entre o Código de Defesa do Consumidor e a nova Lei do Inquilinato, aquele por possuir normas gerais não revoga expressamente esta e nem é revogado por ela. Sobre isso reportemo-nos a Cláudia Lima Marques (2002, p. 365), "Pode haver a coexistência da nova lei em face da anterior lei, desde que compatíveis. A lei especial mais nova não afeta a vigência da lei geral anterior, no que não forem incompatíveis, sendo necessário examinar a finalidade das duas leis." 


Todavia, existe um caso de incompatibilidade entre elas, quanto ao disposto no art. 51, inc. XVI da Lei nº 8.078/90 com o art. 35 da Lei nº 8.245/91, mesmo que o critério do primeiro seja mais seguro.


"É que o art. 35 da nova Lei do Inquilinato, ao tratar das benfeitorias necessárias afasta a incidência direta da Lei de Defesa do Consumidor." (POPP, 1997, p. 254). Por benfeitorias necessárias deve-se entender, "as consistentes em obras ou despesas feitas na coisa, com o fim de conservá-la, melhorá-la, ou embelezá-la", (CARNEIRO, 2000, p. 208).


Portanto, de acordo com o entendimento jurisprudencial colhido na obra de Waldir de Arruda Miranda Carneiro (2000, p. 212), temos:


Benfeitorias necessárias. Cláusula de não indenizar. Inaplicabilidade do CDC. Neste sentido: "Despejo. Direito de retenção. Indenização. Exclusão contratual. Validade (art. 35 da Lei nº 8.245/91). Inaplicabilidade do art. 51, XVI, da Lei nº 8.078/90 (Código do Consumidor) às relações locatícias. O artigo 35 da Lei nº 8.245/91, que legitima a cláusula de exclusão de indenização por benfeitorias, afasta a aplicação do artigo 51, XVI, do Código de Defesa do Consumidor - Lei nº 8.078/90 - aos contratos de locação". (Ap. s/ver. 450.566, 8º Câm. do 2º TACSP, j. 2.5..96, rel. Narciso Orlandi).


Além deste caso, segue ainda outros posicionamentos jurisprudências que fortalecem a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor frente à nova Lei do Inquilinato, 8.245/91:


"Locação não residencial. Despejo. Representação legal. Benfeitoria. Direito de Retenção. Indenização. Renúncia. Cláusula contratual. Não padece de nulidade a cláusula contratual de renúncia a indenização e a retenção de benfeitorias necessárias, sobretudo quando, tratando-se de locação não residencial, não exerce o locador atividade econômica profissional de oferecimento de imóveis ao mercado." (Ap. 0234897-2/00, 1.º Câm. do TAMG, j. 03.06.1997, rel. Paris Pena, v. u., JUIS - Saraiva nº 12).


Como se pode perceber também no caso da jurisprudência supra citada, devido ao fato da locação não ser de natureza residencial, em que se identifique os componentes da relação de consumo (fornecedor e consumidor), de imediato afastar-se-á a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, como foi analisado acima, ou seja, nesta locação o locatário não utiliza o imóvel locado para sua moradia, mas sim para realizar outras atividades que descaracterizam o locatário como destinatário final. 

Observe-se também, estes outros entendimentos que se encontram infra citados:


"Locação residencial. Direito de retenção e Indenização. Cláusula contratual que o afasta. Possibilidade. As benfeitorias necessárias e úteis serão indenizáveis e permitem o exercício do direito de retenção somente se as partes não convencionarem o contrário no contrato locativo. Inteligência do art. 35 da Lei nº 8.245/91, que se aplica ao caso porque já vigente quando aforada a demanda. A nova Lei do Inquilinato prevalece sobre o Código de Defesa do Consumidor, visto que posterior a este e por se tratar de lei especial. Procedente jurisprudencial." (Ap. 193068590, 1.º Câm. do TARS, j. 08.06.1993, rel. Juracy Vilela de Souza, v. u., JUIS - Saraiva nº 12).


"Despejo. Direito de Retenção ou indenização por benfeitorias necessárias. Inadmissibilidade ante expressa disposição contratual. Exegese do art. 35 da Lei nº 8.245/91. A renúncia ao direito indenizatório ou de retenção do imóvel locado, em razão de benfeitorias, é válida e eficaz, não encontrando restrições no Código de Defesa do Consumidor, inaplicável às locações." (Ap. s/rev. 471.449, 5.º Câm. do 2.º TACSP, j. 11.12.1996, rel. Adail Moreira).


No caso da primeira jurisprudência, dois aspectos devem ser analisados, o primeiro é o de que se as partes envolvidas não estipularem no contrato de locação residencial a permissão do direito de retenção e indenização por benfeitorias necessárias e úteis deverão ser aplicados os preceitos da Lei 8.245/91, no segundo aspecto nota-se que o juiz aplicou o raciocínio de que a lei especial posterior prevalecerá sobre a lei geral anterior. Todavia como já foi salientado acima, não será esta a alternativa mais segura, uma vez que o Código de Defesa do Consumidor é lei geral de caráter público e não é revogada pela lei especial posterior a ele, como é caso da nova Lei do Inquilinato, sendo esta baseada nos princípios daquela. Daí que, uma vez verificada existência de lacunas na lei especial será na lei geral que ela irá buscar as soluções para os problemas suscitados.


Com relação à segunda jurisprudência, apesar da expressa disposição contratual que faria surgir a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, preferiu o magistrado utilizar os preceitos da nova Lei do Inquilinato ao declarar que a renúncia ao direito indenizatório ou de retenção do imóvel locado, em razão de benfeitorias, é válida e eficaz, por não encontrar barreiras no Código de Defesa do Consumidor que é inaplicável às locações. Diante deste entendimento, entende-se que o magistrado não poderia ter afastado a incidência da lei de defesa do consumidor, visto que no contrato havia estipulação expressa da cláusula contratual que previa o direito de retenção ou indenização por benfeitorias necessárias, o que favorecia o consumidor a não se tornar mais vulnerável ainda diante deste contrato.
Ainda no exame desta incompatibilidade, entre o art. 35 da nova Lei do Inquilinato com o art. 51, XVI, do Código Defesa do Consumidor, é necessário destacar a importante questão do "direito de retenção" contida no caput do art. 35 daquela lei.


Por direito de retenção deve-se entender que, segundo Venosa (1997, p.130-1):
"é um meio procedimental de garantir o cumprimento de uma obrigação. É meio de defesa do credor que deve restituir uma coisa. No caso o credor é o locatário que tem direito a ser ressarcido pelos melhoramentos realizado no prédio. Se o contrato exclui qualquer indenização, inclusive pelas benfeitorias necessárias, não haverá pois direito de retenção."


Logo, só poderá reter quem tem direito à indenização.


Como o assunto não é pacífico na jurisprudência, há também posicionamentos que demonstram a prevalência do Código de Defesa do Consumidor sobre a nova Lei do Inquilinato, no que diz respeito ao direito de indenização por benfeitorias previstas no contrato de locação de imóveis residenciais, como podemos perceber abaixo:


"Segundo a Lei do Inquilinato, havendo ressalva em contrário ao direito de indenização por benfeitorias no contrato, não tem o locatário a pretensão. É nula de pleno direito, segundo o Código do Consumidor, a cláusula que possibilite a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias. Não se conhece do direito de retenção, porém, ressalve-se o direito do locatário de pleitear por benfeitorias necessárias em ação própria" (Ap 196054050, 5º Câm. do TARS, j. 13.06.1996, rel. Jasson Ayres Torres, JUIS-Saraiva nº 12).
Em relação ao direito de retenção, quando não especificado, prevalecerá também, de acordo com a jurisprudência que segue abaixo, os ditames do Código de Defesa do Consumidor, por ser proteção contratual genérica normativa de ordem pública:


"Direito de retenção por benfeitorias. Cláusula contratual excludente. Benfeitorias necessárias. Nulidade. Contrato firmado na vigência do Código do Consumidor - arts. 35 da Lei nº 8.245/91 e 51, inc. XVI, da Lei nº 8.078/90. Prevalência desta. Direito de retenção, todavia, não acolhido, por falta de especificação das mesmas. Tendo em vista o disposto no art. 51, XVI, da Lei nº 8.078/90 (Código do Consumidor), que prepondera sobre a Lei nº 8.245/91, por ser norma de ordem pública, é nula de pleno direito a cláusula contratual firmada sob sua égide, que possibilita a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias. A despeito da nulidade, a pretensão de retenção do imóvel por benfeitorias não pode ser acolhida, se elas não foram relacionadas com especificações, minúcias, circunstâncias, natureza e época de construção." (Ap. 0076084100, 7ª Câm. do TAPr, j. 10.04.1995, rel. Leonardo Lustosa, JUIS-Saraiva nº 12).


Nesta jurisprudência supra citada, percebe-se que o magistrado agiu de acordo com os aspectos da proteção prevista pelo Código de Defesa do Consumidor, por não permitir que a lei especial posterior revogasse a lei geral de caráter público, uma vez que elas coexistem e não se sobrepõe uma a outra. Além disso, como o direito de retenção não foi especificado pelas partes no contrato, não pode-se afastar a incidência do Código de Defesa do Consumidor e neste caso percebeu-se que o consumidor teve sua vulnerabilidade protegida em que o contrato celebrado com o seu locatário foi abarcado pela proteção contratual genérica consumerista. 


Assim, o que se notou, é que, cada caso necessita de acurado exame em suas cláusulas gerais e específicas. Aplicar-se-á o que reza o art. 35 da nova Lei do Inquilinato, por se tratar de lei especial que foi publicada depois do Código de Defesa do Consumidor, se determinado contrato de locação residencial prevê que as benfeitorias necessárias e úteis serão indenizáveis e permite o exercício do direito de retenção pelo fato de terem convencionado o contrário. Por conseguinte, na falta de especificação normativa do contrato de locação residencial, prevalecerá o disposto do Código de Defesa do Consumidor, por se tratar de norma de ordem pública, uma vez que não foi estabelecido a incidência direta da lei especial.


CONCLUSÕES


Conforme o que foi salientado pelo trabalho, percebe-se à cada dia, que a nossa sociedade passa por profundas transformações, principalmente no que diz respeito às relações consumeristas que aquecem a economia global, ao introduzir nos mercados novos produtos com novas tecnologias, além das novas tecnologias, ou seja, comodidades que facilitam o crédito dos consumidores para que estes possam virem adquirir novos produtos.
Dentre estas novas tecnologias, não se pode negar que os contratos das relações de consumo também tiveram suas incrementações, ao instituir uma padronização das cláusulas contratuais que dificulta a negociação entre as partes por um contrato mais justo e que atenda às necessidades da parte mais vulnerável.


Será pela busca, não apenas por um reequilíbrio contratual, mas também da coibição de práticas abusivas por parte de fornecedores perante consumidores, que o Código de Defesa do Consumidor destinará seu corpo legislativo, ao assegurar novos direitos aos cidadãos, no momento do ato de consumo, no caso específico desta dissertação, o do exame da nova Lei do Inquilinato, 8.245/91, lei especial, com o Código de Defesa do Consumidor, 8.098/90, norma pública de caráter geral.


Nas céleres palavras de Cláudia Lima Marques (2002, p. 590-591), a jurista demonstra que:


"Uma vontade protegida pelo direito, vontade liberta das pressões e dos desejos impostos pela publicidade e por outros métodos agressivos de venda, em suma, uma vontade racional. Não há como negar que o consumo massificado de hoje, pós-industrial, está ligado faticamente a uma série de perigos para o consumidor, vale lembrar os fenômenos atuais de superendividamento, de práticas comerciais abusivas, de abusos contratuais, da existência de monopólios naturais dos serviços públicos concedidos ou privatizados, de falhas na concorrência, no mercado, na informação e na liberdade material do contratante mais fraco na elaboração e conclusão dos contratos. Apesar de todos estes perigos e dificuldades, o novo direito contratual visa concretizar a função social dos contratos, impondo parâmetros de transparência e boa-fé." 
Assim, observa-se que, por ser tema polêmico, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, ressalvadas as ponderações apresentadas, percebemos que não existe critério seguro para se afirmar de forma definitiva qual relação genérica pode ou não ser alcançada pelo CDC.


A análise do caso em concreto, visando sempre o equilíbrio das partes contratadas, além da necessidade de se identificar, claramente, a figura do fornecedor e do consumidor nas relações de locação, é que trará, a resposta mais adequada.


Não obstante algumas breves considerações mostradas ao longo deste trabalho, chega-se aqui a uma conclusão que merece ser sintetizada: como a Nova Lei do Inquilinato é posterior à lei geral (Código do Consumidor), prevalecerão os preceitos daquela, apesar de ambas não gerarem nenhum conflito entre si. O legislador pátrio, ao redigir a Lei nº 8.245/91, foi influenciado plenamente pela principiologia contida nos ditames do CDC, em relação à nova sistemática da teoria contratual, que traz o princípio da equidade e da boa-fé como uma de suas novas concepções.


Portanto, considera-se totalmente cabível a aplicabilidade do CDC nos contratos de locação de imóveis não comerciais, no que a Nova Lei do Inquilinato silenciar em seus princípios específicos, no escopo de suprir a lacuna desta lei.


BIBLIOGRAFIA
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CARNEIRO, Waldir de Arruda Miranda. Anotações à Lei do Inquilinato. São Paulo: Ed. RT, 2000.
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo: Saraiva, 2001.
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NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994.
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RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Dos Contratos e das declarações Unilaterais da Vontade. 28º ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Lei do Inquilinato Comentada. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1997.
________, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.


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