APOSENTADORIA - DIREITO DISPONÍVEL - DESAPOSENTAÇÃO - INDENIZAÇÃO AO SISTEMA PREVIDENCIÁRIO - Roberto Luis Luchi Demo

Procurador Federal e Chefe da Consultoria Jurídica do INSS em Cascavel/PR.

SUMÁRIO: Intróito; 1. Diagnóstico; 2. Fundamento; 3. Proposição; Epílogo.


INTRÓITO


O debate é bom porque gera iniciativas. Enveredo na contramão: o PL 7.154/02, apresentado pelo Deputado INALDO LEITÃO em 27.08.2002 e que altera a L. 8.213/91, incitou-me ao debate monológico. Seu texto (obediente à LC 95/98):


"Art. 1º Fica acrescentado ao art. 54, da L. 8.213/91, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, o seguinte parágrafo único:
'Art. 54. .....
Parágrafo único. As aposentadorias por tempo de contribuição e especial concedidas pela Previdência Social, na forma da lei, poderão, a qualquer tempo, ser renunciadas pelo Beneficiário, ficando assegurada a contagem do tempo de contribuição que serviu de base para a concessão do benefício. (NR)'
Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação."


Leio na Justificativa: "A renúncia é ato unilateral que independe de terceiros, e, especialmente, em se tratando de manifestação de vontade declinada por pessoa na sua plena capacidade civil, referentemente a direito patrimonial disponível. Falar-se em direito adquirido ou em ato jurídico perfeito, como tem sido alegado por aquele Instituto, é interpretar erroneamente a questão. Nesse caso, a garantia do direito adquirido e da existência de ato jurídico perfeito, como entendido naquele Instituto, só pode operar resultado contra o Poder Público, sendo garantia do detentor do direito".


1. DIAGNÓSTICO


A premissa está correta: a aposentadoria, a par de ser direito personalíssimo (não admitindo, só por isso, a transação quanto a esse direito, v.g., transferindo a qualidade de aposentado a outrem) é ontologicamente direito disponível, por isso que direito subjetivo e patrimonial decorrente da relação jurídico-previdenciária. Nesta toada, o STJ já decidiu, no REsp 143.092, JORGE SCARTEZZINI, DJ 18.06.2001, pela ilegitimidade do MPF para propor ACP obrigando o INSS a aceitar pedidos de aposentadoria especial independente do limite de idade.


Outrossim, a conclusão a que chega é parcialmente equivocada. A vedação à renúncia não decorre de motivo intrínseco ao próprio ato, qual a indisponibilidade do direito renunciado (malgrado o discurso normativo da legislação previdenciária: art. 60, § 2º, D. 3.048/99, na sua redação originária e art. 181-B, D. 3.048/99, acrescido pelo D. 3.625/99: "As aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial concedidas pela previdência social, na forma deste Regulamento, são irreversíveis e irrenunciáveis"). Tampouco decorre da formação de ato jurídico perfeito que pode sim ser alegado em favor do Poder Público: STF, RE 108410, RAFAEL MAYER, DJ 16.05.1986. E, antes, por motivo sistêmico e extrínseco: o equilíbrio atuarial que permeia todo o sistema previdenciário, enquanto princípio constitucional positivado pela EC 20/98, que deu nova redação ao caput do art. 201, CF/88.


2. FUNDAMENTO


A Previdência Social é, em resumo, simples relação entre contribuição e retribuição (daí se diferencia da Saúde e da Assistência Social, que prescindem da contribuição mesma). Se o beneficiário não indenizar "algo" ao sistema previdenciário, para fins de nova contagem do tempo de contribuição já utilizado, a equação previdenciária não fecha: a retribuição será maior que a contribuição, arrostando a relação custo-benefício sob a perspectiva do equilíbrio atuarial.


É imaginar dois segurados em idêntica situação jurídico-etiológica. Preenchido o tempo mínimo de aposentação proporcional no RGPS, um exerce esse direito, aposenta-se e continua trabalhando até atingir o tempo necessário à aposentação integral; outro, não exerce o direito e trabalha até o mesmo marco temporal. Se o primeiro segurado renunciar à aposentação proporcional para pedir, juntamente com o segundo, a aposentadoria integral, ambos vão se aposentar com o mesmo valor de benefício, sem embargo de que o primeiro já recebeu retribuição da Previdência Social durante todo o período em que gozou da aposentadoria depois renunciada! É uma situação que fere a isonomia e o equilíbrio atuarial da Previdência.
O estado atual do ordenamento jurídico não contemporiza com essa possibilidade, ut arts. 11, § 3º e 18, § 2º, L. 8.213/91. Cito a jurisprudência: "O segurado que obtém aposentadoria proporcional não pode computar as contribuições posteriores, recolhidas em decorrência da continuidade da atividade laborativa, para efeito de obter aposentadoria integral". (TRF 4ª R., AC 2000.04.01.097636-0, PAULO AFONSO BRUM VAZ, 5ª T., DJ 27.02.2002) e "Não é renunciável o benefício de aposentadoria por tempo de serviço para a percepção de nova aposentadoria no mesmo regime previdenciário. O exercício de atividade abrangida pela Previdência Social pelo segurado já aposentado não gera direito a novo benefício, não podendo perceber uma nova aposentadoria ou computar o tempo posterior ao jubilamento para fins de aumento do coeficiente de cálculo. A devolução das contribuições em forma de pecúlio não tem mais amparo legal desde a extinção deste benefício pela L. 8.870/94" (TRF 4ª R., AC 2000.71.00.015111-0, SURREAUX CHAGAS, 6ª T., J. 05.06.2001).


Pode-se ir mais além, ora com a contagem recíproca (entre sistemas de previdência diversos). Duas pessoas da mesma idade começaram a trabalhar no mesmo dia: a primeira, no serviço público federal e a outra, na iniciativa privada. Depois de 35 anos de serviço, a segunda se aposenta no RGPS com proventos de R$ 1.000,00, faz concurso para o mesmo cargo público federal da primeira, é aprovada, passa a receber R$ 3.000,00 e se aposenta compulsoriamente aos 70 anos de idade. A primeira também se aposenta no mesmo dia. Ambas irão receber os mesmos proventos de aposentadoria, sem embargo de que a primeira já recebeu retribuição da Previdência Social durante todo o período em que gozou da aposentadoria depois renunciada. Nesse caso, pela Lei da compensação financeira (L. 9.796/99, regulada pelo D. 3.112/99, alterado pelo D. 3.217/99, e pela Portaria Ministerial 6.209/99), o INSS arca com o ônus respectivo ao tempo de serviço por ele certificado: a compensação previdenciária, assim nominada a partir da IN 57/01. Daí, a segunda pessoa precisa devolver "algo" ao INSS, para manter a equação previdenciária. Esse "algo" não pode ser os proventos que recebeu durante a aposentadoria, por isso que concedida regularmente. Também não pode ser o quantum da compensação previdenciária, pena de um beneficiário hipotético que recebeu somente um mês de aposentadoria ter que pagar o mesmo de outro que recebeu, v.g., durante 10 anos. Há de ser, outrossim, uma fórmula que componha a compensação previdenciária com o montante de benefício (em termos de valor e tempo de duração) recebido.
Nesse caso, entretanto, o ordenamento jurídico-legal silencia. A jurisprudência tem admitido a renúncia independente de indenização: "RENÚNCIA À APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO, COM EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO DE TEMPO DE SERVIÇO - É perfeitamente válida a renúncia à aposentadoria, visto que se trata de um direito patrimonial de caráter disponível, inexistindo qualquer lei que vede o ato praticado pelo titular do direito. A instituição previdenciária não pode contrapor-se à renúncia para compelir o segurado a continuar aposentado, visto que carece de interesse". (TRF 4ª R., AC 2000.04.01.079647-2, JOÃO SURREAUX CHAGAS, 6ª T., DJ 25.10.2000). Cumpre registrar o TCU dispensar indenização, no caso de retorno do servidor aposentado à atividade, para nova contagem do tempo de contribuição já utilizado: DECISÃO 62/1998, VALMIR CAMPELO, 2ª C., DOU 07.04.1998 e DECISÃO 65/1994, MARCOS VINICIUS VILAÇA, 1ª C., DOU 22.03.1994. Com base nesse dado, CARLOS ALBERTO PEREIRA DE CASTRO e JOÃO BATISTA LAZZARI sustentam a dispensa da devolução dos proventos recebidos: "Questionamento importante que tem surgido é a respeito da obrigação de devolução dos proventos recebidos durante o período em que o beneficiário esteve jubilado. Entendemos que não há a necessidade da devolução dessas parcelas, pois não havendo irregularidade na concessão do benefício recebido, não há o que ser restituído. Como paradigma podemos considerar a reversão, prevista na L. 8.112/90, que não prevê a devolução dos proventos percebidos" (Manual de Direito Previdenciário, São Paulo: LTr, 2. ed., p. 459).


3. PROPOSIÇÃO


Esse o contexto, impõe-se um equacionamento sistêmico da desaposentação, a fim de evitar que a aplicação da norma permita distorções além ou aquém de sua verdadeira ratio, como ocorreu, v.g., com a bem-intencionada contagem do tempo de serviço rural limitada aos benefícios de valor mínimo e posta na redação original do art. 55, § 2º, L. 8.213/91 (vide STEPHANES, Reinhold. Reforma da Previdência sem segredos. São Paulo: Record, 1998, p. 65/9). É sempre bom lembrar, nesse passo inicial da tarefa legiferante, de Santo Tomás de Aquino, quando dizia toda lei padecer do vício originário (ser genérica e regular casos concretos), a fim de aproximar o quanto possível a mens legis da mens legislatoris, partindo da premissa de que essa mens legislatoris está em sintonia com o sistema, sem probabilidade nem possibilidade de distorções da mens legis (que ganha importância na hermenêutica moderna) pelo operador do Direito.


A renúncia administrativa à aposentadoria é possível, sim, de jure condendo. E a indenização é obrigatória decorrência, não da renúncia, mas da utilização do tempo de contribuição para nova aposentadoria, a fim de manter a isonomia de custeio da previdência social e o equilíbrio atuarial (especialmente o último que, por ter sido positivado recentemente, não houve ainda a atenção da doutrina e da jurisprudência na perspectiva da desaposentação).


O INSS não pode obrigar, no plano teorético, quem não quer receber benefício, a continuar recebendo (ressalto a expressão, porque há norma regulamentar determinando esse procedimento), mas daí não decorre automática e necessariamente que da renúncia exsurge o direito à contagem do tempo de contribuição já utilizado, para nova aposentação. Essa utilização condiciona-se à determinada indenização. O beneficiário renuncia à aposentadoria, mas não ao tempo de contribuição que teve averbado. Daí, a situação deve ser recomposta a uma situação que mantenha tanto quanto possível a equação previdenciária originária.


Não se pode argumentar contrariamente com a circunstância de que a reversão do servidor público dispensa a devolução dos proventos. Erro legislativo anterior não justifica outro, em especial quando se tem a iminência da reforma da previdência do servidor público, que ônus tão pesado é para a sociedade. Tampouco dizer que os proventos têm caráter alimentar, dispensando-se sua devolução em face dessa natureza mesma. Ora, trata-se de opção do segurado pelo pagamento de uma indenização a fim de dar nova eficácia jurídico-previdenciária ao tempo de contribuição já utilizado, e não de devolução dos proventos já recebidos. Sendo, pois, opção do segurado, este há de diligenciar no sentido de viabilizar essa indenização, pena de não usufruir do direito à reutilização do tempo de contribuição, necessariamente condicionado.


Proponho, desse modo, nova redação ao p.u. do art. 54, L. 8.213/91:
"Parágrafo único. As aposentadorias por tempo de contribuição e especial concedidas pela Previdência Social, na forma da lei, poderão, a qualquer tempo, ser renunciadas pelo Beneficiário, ficando condicionada a certificação do tempo de contribuição que serviu de base para a concessão do benefício, ao pagamento de indenização proporcional à compensação previdenciária e ao total recebido a título de aposentadoria, nos termos do regulamento." (NR)


Essa redação parte de três escolhas. Uma de natureza política: não pode contar o tempo de contribuição já utilizado para aposentadoria no RGPS para nova aposentadoria no RGPS mesmo, mas tão-só no regime próprio. É que os direitos previdenciários decorrentes do exercício de atividade abrangida pelo RGPS por segurado já aposentado sempre foram bastante restritos, valendo lembrar que desde a L. 6.243/75 essas prestações previdenciárias se resumiam à reabilitação profissional, ao auxílio-acidente e ao pecúlio, sendo que, na atual redação da L. 8.213/91, após as L. 8.870/94, 9.032/95 e 9.528/97, somente faz jus à reabilitação profissional e ao salário-família. Entender diferente é andar na contramão do Direito Previdenciário. Outra de natureza jurídica: a totalidade dos proventos recebidos deve ser levada em conta, independente de prescrição ou decadência sobre os valores, pois o INSS não possuía, antes do requerimento administrativo de desaposentação, direito potestativo de exigibilidade, sendo absurdo contar qualquer prazo relativamente a quem não tinha e não tem ação nem potestade. Última, de natureza econômica: vinculação da indenização às duas variáveis mencionadas na norma, i.e., valor da compensação previdenciária e total recebido a título de aposentadoria.


EPÍLOGO


Para concluir, registro o interesse público repousar na soma de todos os possíveis interesses individuais que, inexoravelmente, dirigem-se à consecução e preservação de um sistema previdenciário sustentável. Sem uma norma congruente, em harmonia principiológica e que mantenha o equilíbrio atuarial, observar-se-á uma rachadura no sistema previdenciário que, somando-se às demais, permite

 potencialmente um desmonte da própria instituição da Previdência, com repercussão na economia nacional (vide uma abordagem econômica da Previdência Social em THOMPSON, Lawrence, Mais velha e mais sábia: a economia dos sistemas previdenciários, tradução de Celso Barroso Leite, Coleção Previdência Social, v. 4, 2000). Neste passo, é bom alertar para o atual processo de desmonte de várias instituições que fazem a nação, como a escola pública e as Forças Armadas, para citar algumas. E, sem Previdência, não há desaposentação: não há futebol sem bola. É de bom alvitre recordar o Direito não pode ser desajustado à realidade, por isso que a lei tem limites e possibilidades. A redação ora proposta não é a chave mágica para a questão. Mas, põe-se a nível de reflexão para alterar o projeto de lei em tela no sentido de confiná-lo aos atuais princípios previdenciários positivados.

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