A INCONSTITUCIONAL QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO - Milton Terra Machado

Advogado,
Mestrando em Direito pela PUC/RS,
Professor da Escola Superior de Advocacia.

SUMÁRIO: 1. Leis novas para antigos desideratos; 2. O problema da intervenção estatal e os direitos fundamentais; 3. História do sigilo bancário; 4. O Poder Constituinte Originário e a interpretação constitucional; 5. Interesse público e sigilo bancário constitucional como direito relativo; 6. O sigilo bancário na visão da jurisprudência e do STF; 7. Conclusão: Ficção e realidade.


1. LEIS NOVAS PARA ANTIGOS DESIDERATOS


O Congresso Nacional aprovou as Leis Complementares nºs 104 e 105, ambas da mesma emblemática data de 10.01.2001. Por coincidência, 1001 - 2001. Para alguns, pode significar - com a simbologia dos números - o grande avanço de "1000 anos" para o Fisco no Brasil. Para outros, será lembrado como o dia da intervenção, ou tentativa de intervenção, pelo Estado brasileiro, e de forma drástica, em duas instituições extremamente delicadas e caras à estrutura jurídica que rege a relação Estado-Cidadão no Brasil. Quais sejam, o princípio da legalidade - e seu consectário tipicidade fechada - e o sigilo bancário.


Com efeito, a instituição de norma geral antielisão (LC nº 104/2001) e a violação do segredo financeiro (LC nº 105/2001) ocorreram após um competentíssimo lobby governamental ad terrorem no Congresso, em momento político delicado, quando da votação do aumento do salário mínimo para R$180,00. Segundo se disse, esse patamar seria impossível de atingir, sem a extinção da garantia do sigilo em relação ao Fisco, para o combate à sonegação fiscal. Alegava, ainda, o Governo, a absoluta necessidade de terminar-se com o Planejamento Tributário no Brasil, termo que o Secretário da Receita Federal associou, pejorativamente, nas poucas vezes em que falou sobre o tema, à contratação dos melhores advogados para estudar as leis e, com isso, pagar menos Tributos, como se não fosse obrigação de todos conhecer as leis e obedecê-las. 


Aliás, há décadas os fulcros do problema da difícil e belicosa relação Fisco-contribuinte no Brasil têm sido exatamente estes: ora o desconhecimento da lei, ora a insubmissão ao seu império, ainda que conhecida, evocada e invocada. No particular, ou seja, em tema de respeito a princípios constitucionais e garantias individuais, os sucessivos Governos brasileiros, por tradição e desde há muito, primam por desconsiderá-los. Donde poder-se-ia dizer que, nesse aspecto, o Governo brasileiro tem "maus antecedentes".


Essa foi a razão pela qual tanta preocupação teve o legislador constituinte, com relação aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo frente ao Estado. Dedicou-lhes o imenso art. 5º, mantendo unidas, consciente ou inconscientemente, todas aquelas garantias em um mesmo artigo, para dar-lhes mais força, como que apelando para a simbologia do lema "unidos venceremos". Mas a luta continua, e é árdua, como denota a aprovação das referidas leis complementares.


A tentativa de quebra do sigilo bancário vem de longe, como se verá adiante, assim como a idéia, ínsita na norma antielisão, da interpretação econômica do direito tributário. A novidade, portanto, foi o estratagema do Governo de assustar um Congresso leigo, oferecendo como exemplos, hipóteses - a que a lei viria dar guarida - de fraudes e simulações, que já eram, pela legislação anterior, e com toda razão, perfeitamente tributáveis. Com efeito, entre as situações que o Governo descreveu ao Parlamento, estava a destinação fraudulenta de extrato de guaraná para as fábricas de refrigerantes, cuja saída é tributada, como se fosse para as indústrias farmacêuticas, cuja saída é desonerada. 1 De forma que fica a fundada dúvida, se os nobres congressistas aprovaram o que efetivamente desejariam aprovar. 


Foi, assim, sob todos os aspectos lamentável a edição das referidas leis, em regime de urgência velada e após inacreditável silêncio e culposa omissão da comunidade jurídica nacional e dos setores organizados da sociedade civil, sobre tão relevantes temas.


Mormente sobre a norma geral antielisão, cujo desconhecimento, como se viu, pelo Congresso e pela sociedade, das verdadeiras causas e conseqüências, propiciou suave tramitação legislativa. É triste, pois, para atingir os objetivos declarados pelo Fisco no Congresso, bastaria um estudo mais aprofundado do fenômeno da simulação, para tributarem-se aquelas operações oferecidas como exemplo ao Parlamento, sem necessidade de agredir princípios constitucionais e evitando "oferecer-se à raposa a faculdade de, cuidando do galinheiro, decidir se determinada galinha é apetitosa ou não." Ou, ainda, na imagem de Ives Gandra da Silva Martins, é como "nomear Herodes, que matou os santos inocentes, Presidente da Fundação do Bem-Estar do Menor, se tal instituição existisse à época." 2
Neste trabalho, porém, iremos nos ocupar somente do sigilo bancário, eis que ambos os temas merecem, sem dúvida, estudo detalhado, preocupado e autônomo mas, com relação àquele, já tramitam no Supremo Tribunal Federal várias ações diretas de inconstitucionalidade.


2. O PROBLEMA DA INTERVENÇÃO ESTATAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS


Não é de hoje, nem sequer do século passado, o fenômeno da opressão do Estado sobre o indivíduo e a tentativa de intervenção estatal na vida privada. IHERING já alertava para esse risco, em 1892, em sua primorosa obra A finalidade do direito. 3 Vale a pena "ouvir" o clamor desse verdadeiro ícone do Direito:
"Devemos estar, para sempre, preparados para novas restrições? Deverão as pretensões da sociedade aumentar progressivamente? Não há, então, nenhum ponto em que o indivíduo possa exclamar: basta de pressão! estou exausto de ser animal de carga da sociedade! Há que existir uma fronteira entre ela e mim, um limite que ela não possa ultrapassar para ingerir-se em minha vida, uma zona de liberdade que pertença exclusivamente a mim e que ela deva respeitar."


O grande mestre admite, é fato, a dificuldade de estabelecer-se a exata fronteira entre o direito à privacidade e as situações de presença e prevalência de interesse público, que permita a invasão na vida do indivíduo. 4 Mas, já àquela época, sem tanta tecnologia a serviço da indiscrição e com curiosidade estatal infinitamente menor que a de hoje, IHERING se sentia sufocado. 


Ao tratar do Direito e do Estado, HANS KELSEN observa que o capítulo dos direitos e garantias individuais é próprio das constituições modernas e se dirige, basicamente, aos órgãos do próprio Estado. Ensina, o mestre fundador da Escola de Viena, que o propósito de uma norma constitucional que concede uma liberdade ou um direito individual é, precisamente, o de impedir que os órgãos do poder executivo sejam autorizados, por uma simples lei, a ultrapassar os limites da esfera de interesse determinada pela "liberdade" ou "direito". 5


Diz, ainda, KELSEN, que quando a constituição delega à legislação ordinária o poder de restringir ou abolir uma proibição estabelecida pela constituição, ela toma com uma das mãos o que fingiu dar com a outra. 6 Portanto, como se verá, sob pena de tornar absolutamente inócuas as garantias individuais, deve-se interpretá-las com a máxima amplitude, já que dirigidas ao próprio Estado, o qual, por ser plenipotenciário, tende a comprimir, reprimir e sufocar o cidadão.


Lembre-se, a privacidade é da própria condição humana e é por esta razão que as Constituições modernas costumam positivar esse tipo de garantia. Com muito mais razão, estava o constituinte brasileiro, preocupado, como se disse, com os "maus antecedentes" dos Governos brasileiros. Por isso, fez inserir no início da Carta Magna as salvaguardas de liberdade. Aliás, é inconteste que tais garantias configuram proteção não apenas de um indivíduo em relação ao outro mas, também, destes para com o Estado, razão pela qual CAPPELLETTI 7 fala em "sujeição do Estado ou, ao menos, das pessoas que personificam e atuam pelo Estado" a essas normas que regulam garantias fundamentais. No mesmo sentido, MAX WEBER, para quem os "direitos de liberdade são, justamente, formas de asseguração contra certas classes de moléstias provenientes de terceiros e, também e especialmente, do aparato estatal". 8


Também GUSTAV RADBRUCH afirma que o constitucionalismo surgido com a Revolução Francesa possui um pólo positivo, o da participação no Estado dos seus consortes, e um outro polo negativo - no sentido de restrição ao Estado - cuja liberdade de seus participantes é obrigado a respeitar, como garantia de uma esfera de liberdade do indivíduo, com o reconhecimento de limites intransponíveis e inacessíveis à atividade deste mesmo Estado. 9 RADBRUCH lembra, ainda, que FRIEDRICH NAUMANN resumiu essa duplicidade da liberdade em dois lemas: "O Estado somos todos nós" e "O Estado não pode tudo". 10
GIORGIO DEL VECCHIO alerta, com preocupação, para o risco de ruptura institucional, que termina por levar à resistência e à revolução, quando essas garantias não são respeitadas pelo poder público. 11

 Como adverte CHAÏM PERELMAN, entretanto, fazendo coro a IHERING, o controle do poder da administração é a missão que exige do juiz mais sagacidade, pois este é chamado a julgar o difícil equilíbrio entre as necessidades do poder público e as garantias devidas aos cidadãos. 12 Ainda sobre o tema, são obrigatórias as lições de NORBERTO BOBBIO sobre o constitucionalismo e a positivação das garantias individuais, posterior às revoluções libertárias, principalmente a francesa. 13


O inesquecível GERALDO ATALIBA, que tanta falta faz à luta incessante pelo respeito à Constituição e, principalmente, nos momentos de fragilização institucional, já prevenia aos legisladores, naqueles anos que antecederam a Assembléia Nacional Constituinte:


" É traição ao povo e, pois, negação da democracia, consagrar apenas retoricamente os princípios popularmente fixados e, ulteriormente, estabelecer regras que os esvaziem, emasculem ou contravenham". 14
E, lamentando o pouco caso com cumprimento das normas constitucionais:
" A presente preocupação geral com os problemas institucionais culmina, necessariamente, com a grave questão - mais sociológica que jurídica - da eficácia constitucional. Não temos encontrado, ao longo do tempo, generalizada adesão intelectual e afetiva às nossas instituições, em grau que leve à sustentação sólida das mesmas. Se é verdade que os princípios fundamentais têm da comunidade nacional razoável adesão - embora não explícita, nem consciente - como é o caso da república, federação, autonomia municipal, tripartição do poder e legalidade - as regras, entretanto, que lhes asseguram a eficácia, são ignoradas, desprezadas, mal cumpridas. E isto com a aquiescência de uns, a indiferença de outros, a complacência de muitos; com a acomodação dos órgãos de promoção do direito e a preocupação de poucos". 15


3. HISTÓRIA DO SIGILO BANCÁRIO


Com relação ao sigilo bancário, vale lembrar algumas considerações históricas, para se estudar sua origem. A primeira notícia que se tem, a respeito do segredo das negociações financeiras, vem da Babilônia, na chamada fase embrionária da atividade bancária, onde, no famoso Código de Hammurabi infere-se, segundo diversos autores, 16 o respeito ao sigilo daquelas operações, que não podiam ser reveladas.
O povo hebreu também conheceu o sigilo bancário, existindo, na Bíblia, referências ás atividades bancárias e mesmo ao sigilo. Com efeito, no Livro dos Provérbios encontra-se a seguinte exortação: "Trata tua causa (negócio) com teu próximo de maneira a não revelar o segredo do outro" (25;9). Não foi diferente na Grécia, Egito e Roma antigos, pois, mesmo depois de as transações bancárias deixarem os templos, foi preservada a necessidade do segredo sobre as operações. Dessa época, inclusive, é sempre evocado o célebre juramento de Hipócrates, sobre o segredo profissional dos médicos, conhecido como uma das primeiras modalidades de sigilo em razão de ofício. 17


No Digesto, há alusões sobre o sigilo profissional do advogado e o Codex bancário, livro que registrava os débitos e créditos, deveria permanecer no "ministério" do próprio Banco. Mesmo em caso de litígio, o banqueiro só poderia revelar o que fosse estritamente necessário, residindo nessa época o afastamento do sigilo bancário do terreno religioso e ingressando no campo jurídico. 18


Na Idade Média, na fase institucional da atividade bancária, o sigilo incorporou-se definitivamente nessas relações e se consolidou a idéia e o costume de manter as operações bancárias em segredo. Nessa época, a atividade bancária desenvolve-se, cria-se um verdadeiro direito bancário, através da associação dos banqueiros e o estabelecimento de regras a serem por todos respeitadas. Entre essas, o sigilo bancário. Aliás, dizem que nesse tempo surgiu a técnica contábil das partidas dobradas e o magno libro, onde eram registradas as operações financeiras.


Mas foi na Renascença, quando começou a fase capitalista, e atual, da atividade bancária, que iniciou, na França, a positivação do sigilo bancário, através de decreto de Luis XIII, no ano de 1639, o qual recomendava discrição para o comércio e para as finanças. Finalmente, em 1706, aprovou-se a primeira legislação prevendo expressamente o sigilo bancário. 19 De lá para cá, a quase generalidade dos países civilizados e democráticos adotou o sigilo bancário, em maior ou menor extensão, como norma escrita ou consuetudinária.


Ora, todo esse sigilo bancário, através dos tempos, não foi instituído, cultuado e respeitado para proteção de facínoras, criminosos e sonegadores. Tal costume milenar encontra seu fundamento no direito sagrado de qualquer indivíduo á sua intimidade, verdadeira necessidade humana, como bradava IHERING. Parece inelutável, também, que as transações financeiras dos cidadãos dizem respeito, inegavelmente, à sua privacidade. 


No direito brasileiro, a tradição sempre foi a de exigir-se procedimento formal instaurado contra determinado contribuinte, para o Fisco ter acesso às informações dos correntistas. Em 1964, com a Lei da Reforma Bancária (Lei nº 4.595, de 31.12.64 - sem fugir à regra de editar normas importantes no último dia do ano, portanto) restou positivada a opinio necessitatis, exigindo o seu art. 38 processo instaurado contra o contribuinte, para o rompimento do segredo. Sobre esta disposição, aliás, fez escola o julgamento do Recurso Especial nº 37.566-5/RS, em 02 de fevereiro de 1994, o qual considerou que a acepção "processo", contida na lei, só poderia significar processo judicial, no sentido de haver ordem judicial para a quebra do sigilo, de conformidade com as garantias constitucionais.


Mas, muito antes desse julgamento, que colocou uma pá de cal nas pretensões do Fisco, o Governo tentou, várias vezes, extinguir o sigilo bancário. A Lei nº 8.021/90 dispôs, no art. 8º, que uma vez iniciado o procedimento fiscal, os bancos deveriam remeter toda e qualquer informação solicitada, inclusive extratos bancários, excluindo, expressamente, o disposto no art. 38 da Lei da Reforma Bancária, mas sem grande alteração normativa, na verdade. Permaneceu, assim, certa perplexidade nos bancos e nos contribuintes, mas prosseguiu a resistência. Ruiu a tentativa governamental, quando o Banespa obteve liminar para não informar os dados, trazendo com ele uma avalanche de ações judiciais.


Posteriormente, a Lei Complementar nº 70/91, que instituiu a COFINS, regrou no art. 12 que, mediante portaria regulamentar do Ministério da Economia, as instituições financeiras, os bancos e assemelhados deveriam informar os dados solicitados pelo Fisco. A Portaria nº 144 veio ao mundo em 15.03.92 e causou grande contestação da doutrina e, entre ela, ARNOLDO WALD, que considerou absolutamente inconstitucionais as referidas normas, além de prejudiciais à própria economia, em interessante estudo com excelentes referências sobre o sigilo bancário ao redor do mundo. 20 Desta feita, entretanto, o Governo recuou e exigiu apenas dados cadastrais e não mais os extratos. 


Depois, vieram a Lei Orgânica do Ministério Público (Lei Complementar nº 75/93) e o projeto de legislação que instituiu o IPMF, ambas prescrevendo a necessidade de os Bancos atenderem aos pedidos do MP e do Fisco. No caso do IPMF, o Congresso rejeitou a quebra do sigilo no texto da lei. Após o STF fulminar o imposto para o ano de 1993, a Receita Federal, ao se prontificar a devolver o dinheiro recolhido indevidamente, exigia a suspensão da garantia. Nenhuma das tentativas funcionou. A do IPMF era frágil demais, porque sustentada em mera portaria. A do Ministério Público, foi derrubada, ironicamente, por um mandado de segurança impetrado pelo Banco do Brasil. 21


Mais. Ao instituir a CPMF, a Lei nº 9.311/96 previu, novamente, a extinção do segredo, a qual se daria, também, mediante regulamentação do Ministério da Fazenda. O Governo conseguiu, finalmente, obter algum sucesso, pois teve a sensibilidade estratégica de vedar sua utilização para o lançamento de outros tributos e solicitar apenas os montantes globais, sem especificação das operações.
O Governo terminou utilizando a informação, para escandalizar o Congresso, no competente "marketing legislativo" a que nos referimos no início. 


4. O PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL


Em termos de hermenêutica, talvez um dos poucos temas em que não há divergência, ao menos na macrovisão do problema, é o de que o método de interpretação de uma constituição, é absolutamente peculiar. 22 A distinção em relação à interpretação das demais normas deve-se à nobilíssima finalidade do texto, ou seja, a organização política da sociedade e, mais do que tudo, ao fato dela prescrever as liberdades e garantias individuais do povo que ela visa regrar. Assim, enquanto Tribunal Político de função sui generis, 23 cabe ao Supremo Tribunal Federal exercer, obrigatoriamente, interpretação hierarquizante dos princípios e objetivos fundamentais da Carta Política, ou a interpretação sistemática, na forma preconizada por JUAREZ FREITAS. 24


Ainda com relação à interpretação constitucional e, especificamente, sobre a análise de garantias fundamentais, é assente na doutrina que deve o julgamento direcionar-se para a solução que maior eficácia der ao princípio. 25 Ou, no dizer de ANNA CANDIDA DA CUNHA FERRAZ, buscar e aplicar o "espírito da Constituição", 26 ou, ainda, considerar incluído mesmo o que não foi expressamente previsto mas que pode ser implicitamente deduzido, segundo INGO SARLET. 27


Sem perder de vista a crítica de KONRAD ESSE 28 e PONTES DE MIRANDA 29 aos dois métodos interpretativos que, de uma forma ou de outra, originaram todos os demais, identificados nas doutrinas subjetivista e objetivista, consideramos que a interpretação constitucional carrega, mais do que qualquer outra, algo de meio termo entre as duas correntes clássicas. ESSE chega a afirmar, categoricamente, que os métodos contemporâneos de interpretação seriam insuficientes, se tomados um por um, para resolver o problema da interpretação constitucional. Ao sugerir método próprio, 30 entretanto, com o qual concorda JUAREZ FREITAS, 31 surge algo como uma interpretação eclética, que valoriza aspectos de todos os métodos e cria um novo, um meio termo. Com o que, aliás, parece concordar ANNA FERRAZ 32 ao descrever o que é para a doutrina, afinal de contas, interpretar a Constituição. E, se assim é, se ao fim e ao cabo, cada método contribui com sua parcela na interpretação constitucional e se todos eles são, em parte que seja, descendentes diretos das duas correntes clássicas, com o que parece concordar KARL ENGISH, 33 então "a razão e a virtude estariam no meio termo", como queria Aristóteles. 34
Tentando simplificar a questão, inclusive pela restrição natural deste trabalho, entendemos conveniente examinar a questão pela ótica das duas doutrinas clássicas, procurando atender, no entanto, a peculiaridade do tema constitucional. 


Pergunta-se, então, qual foi a mens legislatoris - como quer a doutrina subjetivista 35 - sobre esta gama de garantias e salvaguardas à privacidade? Estava incluída, nas cogitações do legislador, a garantia do sigilo bancário e demais indiscrições possíveis do Fisco para com o contribuinte ou, ao contrário, ficou propositadamente afastado o sigilo bancário, 36 ao não se referir expressamente sobre ele o legislador constituinte?


No nosso entender, é bastante clara a intenção do legislador constituinte de coibir a invasão da privacidade dos cidadãos, o que também já ficou claro, ocorrerá com a quebra do sigilo bancário. Não é razoável, e tampouco lógico, pressupor que o legislador constituinte tenha tido tamanha preocupação com a privacidade, mas dela tenha deliberadamente excluído o segredo sobre as coisas financeiras do indivíduo. Além do mais, a preocupação em colocar aquela referência aos direitos individuais no art. 145, § 1º, ao tratar da fiscalização das atividades econômicas do contribuinte, coloca uma pá de cal na questão.
Já pela ótica objetivista da "voluntas legis, non legislatoris" 37- 38 a tarefa é justamente "atualizar" a norma constitucional e descobrir se a sociedade - e não o Governo - pode ou quer prescindir da privacidade das informações financeiras. É que, devido à peculiaridade da interpretação constitucional, a pergunta a ser respondida, divisado o tema ainda pela íris da teoria objetivista, é se a sociedade - com a qual não foi discutida tema tão agudo - está disposta a sacrificar suas garantias constitucionais em nome de uma arrecadação um pouco maior. 39


Esta resposta, por tudo o que se viu antes, parece não trazer, igualmente, qualquer dificuldade. Com efeito, havendo recorrente oposição da sociedade às tentativas anteriores, nada autoriza se entenda seja outro o costume, a prática ou a vontade popular.


Portanto, examinado o tema de maneira confessadamente simplória, mas por ambos os ângulos doutrinários que deram origem aos demais métodos conhecidos de interpretação, 40 não se verifica a possibilidade de se enxergar como não desejada ou não inscrita na Constituição essa garantia.
É claro que as eventuais violações feitas pelo Fisco ao princípio do sigilo das atividades econômicas, não autorizam que se fale em costume constitucional, 41 pois sempre houve a vigorosa oposição dentro da sociedade à quebra do sigilo bancário, e não existe, obviamente, costume jurídico se o ato causa revolta dentro do próprio grupo determinado. 42 Em sendo assim, jamais poderia ter-se configurado o requisito do "direito morto", que possibilita o surgimento do costume contra legem. 43 Até porque o costume para tal proeza teria que caracterizar o chamado costume notório. 44 Em havendo oposição, também não há como ficar caracterizado costume praeter legem - caso se tenha como não escrito o princípio - não havendo, igualmente, qualquer motivação para eventual reinterpretação das referidas normas constitucionais.


Assim, não seria possível nem mesmo a uma emenda constitucional a quebra do sigilo bancário, 45 pois se trata de cláusula pétrea da Constituição. Seja qual for a técnica hermenêutica que se venha a utilizar, a conclusão é a mesma. O segredo financeiro está na Constituição como direito fundamental e é intocável.


5. INTERESSE PÚBLICO E SIGILO BANCÁRIO CONSTITUCIONAL COMO DIREITO RELATIVO 


A doutrina brasileira nunca teve muita dúvida de que o sigilo bancário brasileiro é, e sempre foi, direito relativo, podendo ceder ante a presença de interesse público comprovado. Vale dizer, suspeitas motivadas sobre determinado contribuinte, que tem seu sigilo quebrado por ordem judicial, sendo também esta, por óbvio, fundamentada.


A respeito da relatividade do sigilo bancário brasileiro, o ex-Consultor Geral da República, ADROALDO MESQUITA DA COSTA, no Parecer nº H-594, acentuou que "o sigilo não é estabelecido para ocultar fatos, mas para revestir a revelação deles de caráter de excepcionalidade."


Argumentam aqueles que se opõem ao sigilo bancário, mesmo relativo, que o instituto se presta à sonegação e que dificulta, senão praticamente impede o Fisco de alcançar a criminalidade. Ora, como se verá adiante, o sigilo nunca foi empecilho para o combate à criminalidade, pois sempre estarão presentes indícios outros que irão autorizar ao juiz a ordem de suspensão da garantia. Há quem sustente, também, não estar previsto na Carta Magna o sigilo bancário. 46 Já OSWALDO OTHON DE PONTES SARAIVA FILHO considera que o sigilo bancário apenas proíbe aos bancos divulgarem os dados de seus clientes a terceiros, mas que a garantia da privacidade cede ante o interesse público do Fisco. Assevera, ainda, esse autor, que o sigilo não se quebra quando são remetidas as informações ao Fisco, apenas se transfere para a administração o ônus do segredo. 47 Esse é um argumento muito utilizado, ou seja, se os funcionários do banco possuem a informação, porque se deveria impedir ao Fisco de compartilhar o segredo? Esquecem-se, os que esposam tal entendimento, que no caso dos bancos I) é o cidadão quem escolhe a quem quer confiar suas informações financeiras e II) não existe o cruzamento dos dados - salvo raríssimas exceções, v.g. se credor e devedor possuem conta na mesma agência bancária - como ocorre a quem detém a totalidade dos dados financeiros de toda uma comunidade. O problema é, justamente, a possibilidade ilimitada de obtenção de informações privadas, confidenciais, segredos, conclusões e, até mesmo, simples ilações que se pode tirar dessa gama interconectada de dados. O perigo do mau uso político dessa informação é enorme e latente. A falta de ética e até a criminalidade na alta administração do País, no passado recente, não autoriza a que alguém duvide desse risco. 


Argumentam, outros, com o exemplo dos regimes anglo-saxões, nos quais não há sigilo bancário previsto em lei. 48 Exclamam, que se um país como os Estados Unidos, tradicionalmente defensor das liberdades e garantias individuais, não protege o sigilo bancário, por que haveria o Brasil de fazê-lo? A resposta é muito simples. É justamente porque lá existe essa tradição de respeito mútuo entre o Fisco e o contribuinte, relação que, sem ser hipócrita, não é possível afirmar exista em nosso País. Entretanto, mesmo naquelas comunidades, há todo um sistema de freios e contrapesos entre os órgãos estatais, e destes para com os cidadãos, através da jurisprudência - há muito e muito sedimentada - de extrema cautela do Estado para com as liberdades do indivíduo. É pública e notória, também, a reparação cabal e rápida, das pessoas lesadas pelo disclosure imotivado por parte do Estado e as pesadas sanções que isso acarreta ao próprio Poder Público. Lamentavelmente, também não é crível a promessa de que por aqui as conseqüências do mau uso dessas informações chegarão sequer perto dos Estados Unidos. Há um outro aspecto, bastante ilustrativo: justamente em razão dessa ausência de uma norma escrita, que coloque os exatos limites do segredo é que ocorrem, no além-mar, fatos impensáveis em um regime de sigilo bancário como o nosso. Com efeito, o jornal Zero Hora de 26.03.2001 49 noticia que um estelionatário aplicou golpe eletrônico milionário em 200 personalidades americanas que apareceram em uma lista da Revista Forbes, obtendo os registros bancários das vítimas simplesmente solicitando-os pelo correio, aos serviços de proteção ao crédito, identificando-se - sem qualquer comprovação - como funcionário de grandes bancos. A história ilustra, justamente, o descaso com o sigilo bancário e certamente não é exemplo que mereça ser copiado.
Não se pode querer comparar, portanto, práticas políticas e jurídicas tão distintas para, tomando apenas parte do exemplo, aplicar em outro lugar. Essa experiência não tem condições de ser bem sucedida, pois altera - e aplica de forma adulterada - o sistema de freios e contrapesos cunhado durante muitos e muitos anos em cada regime.


Aristóteles 50 foi precursor de Rousseau e Augusto Comte, quando sustentou dever o governo adaptar-se ao estado social do povo a que se destina, tendo cada qual o governo que comporta, não sendo possível impor leis e instituições copiadas de outro povo de costumes e antecedentes sociais diferentes.
Em artigo sobre o tema, também insurge-se contra o sigilo TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. 51 afirmando que o direito à inviolabilidade do sigilo - referindo-se a todo o tipo de sigilo - exige o sopesamento dos interesses do indivíduo, da sociedade e do Estado, com o que concordamos plenamente. Entretanto, mais adiante, o Professor da USP opina que o sigilo de dados protegido pela Constituição é o referente apenas à comunicação dos dados e não estes em si mesmos. Também faz longa exposição sobre a distinção que entende haver entre intimidade e privacidade, para concluir que o sigilo bancário não se encontra dentro dessas hipóteses.


O artigo do eminente professor foi rebatido, em outro artigo, por HAMILTON DIAS DE SOUZA, o qual, após concordar com TERCIO a respeito da acepção "sigilo de dados", afirma não ser relevante a distinção entre os termos privacidade e intimidade, mas sim a larga abrangência com que foram utilizados pelo constituinte e lá estão. 52 Segundo, ainda, HAMILTON DE SOUZA, ao sigilo bancário se opõe, efetivamente, o interesse público, para relativizar aquele. Entretanto, somente o Poder Judiciário detém a imparcialidade necessária para desvendar em que circunstâncias pode ser revelada a intimidade do indivíduo. 53


De nossa parte, concordamos plenamente com as assertivas de HAMILTON DIAS DE SOUZA. Somente com ordem judicial é possível ultrapassar-se a barreira constitucional da privacidade, pois, nesse caso, estar-se-á diante daquele preparado e legitimado a arbitrar, caso a caso, quando o valor privacidade deverá ceder em prol do interesse público.


Essa necessidade coletiva, por sua vez, deverá ser devidamente comprovada, ou ao menos alegada com segura verossimilhança, para ser deferida a ruptura do dogma prestigiado pelo Poder Constituinte Originário. Aliás, como que oferecendo um exemplo, a Constituição expressa, na parte final do inciso XII, ao normatizar o sigilo telefônico, que somente a ordem judicial é apta a relativizar o princípio.
Também se manifestaram sobre o tema GILMAR FERREIRA MENDES e IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, em artigo conjunto, onde apresentam o direito de autodeterminação sobre informações e o princípio da proporcionalidade, como critérios de relativização do sigilo bancário. Mas concluem, também, que a averiguação tem de ser feita in concreto. 54 O mesmo GILMAR FERREIRA MENDES, em outro lugar 55 afirma que "quando se impõe que determinadas medidas estatais que afetem direitos fundamentais devam observar um determinado procedimento, sob pena de nulidade, não se está a fazer outra coisa senão proteger o direito mediante o estabelecimento de determinadas normas de procedimento".
Ainda sobre a relatividade do direito ao sigilo, vale conferir, em obra específica sobre o tema, 56 a opinião de PAULO QUEZADO e ROGÉRIO LIMA.


Nos dias atuais, o próprio dogma da superioridade do interesse público sobre o particular tem sido reestudado. A respeito, veja-se o interessante estudo de HUMBERTO BERGMAN ÁVILA, o qual conclui que não é possível a consideração apriorística, abstrata, da superioridade do interesse público sobre o privado, sendo necessário sopesar-se, no caso concreto, os bens jurídicos envolvidos. 57 Vale conferir, igualmente, o estudo de IVES GANDRA DA SILVA MARTINS FILHO, ilustre Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, sobre a proporcionalidade entre o bem comum e o interesse particular. 58
A doutrina penal também sempre foi unânime em considerar o sigilo bancário contemplado na Constituição, mas revelador de um direito relativo do cidadão, não absoluto. Portanto, que pode ser vencido, condicionalmente, secundum ius e por ordem judicial. 59


De qualquer forma, é justo que, passando pelo crivo judicial, por haver razões razoáveis - com perdão pela suposta redundância - a determinarem o sacrifício de tão importante dogma constitucional, possa haver a quebra do sigilo bancário. Pois bem. Esse era, como se sabe, o entendimento dominante da comunidade jurídica, até o advento da LC nº 105/2001, plenamente de acordo, portanto, com o móvel que colocou a garantia no texto da Constituição.

 


Veja-se, no dia 7 de dezembro passado os jornais noticiavam, em manchete, que o Ministério Público gaúcho estava solicitando a quebra de sigilo de 120 contribuintes. Portanto, não apenas possível mas plenamente em prática a suspensão judicial do sigilo. Ironicamente, outra manchete do mesmo dia dava conta da aprovação, pela Câmara dos Deputados, da quebra do sigilo bancário. Em uma mesma página de jornal noticiava-se, assim, de um lado, a efetiva relatividade do sigilo bancário, sendo quebrado por ordem judicial, eis que plenamente motivado o pedido do MP - atendendo solicitação da Receita Federal. De outro, a Câmara dos Deputados aprovando a quebra total do sigilo em relação ao Fisco, eis que este alegava a necessidade suprema de aprovação da norma inconstitucional, para o mesmo desiderato.
De outro lado, a antiga Súmula 182 do Tribunal Federal de Recursos já fulminava o lançamento de Imposto de Renda arbitrado com base apenas em extratos ou depósitos bancários.
Nesse diapasão, deve o Fisco demonstrar perante o juiz - ou ao menos alegar com verossimilhança, como se disse - a violação, pelo contribuinte, do dever de pagar tributos, para ter acesso à sua intimidade.
Mas não é isso o que pretende o Governo, tal o rol de "instituições financeiras" elencadas no art. 1º, § 1º da Lei Complementar nº 105/2001, sujeitas ao envio de informações à Receita Federal. Aliás, a lista não é exaustiva, de vez que, segundo a letra gelada desta lei, serão assim consideradas quaisquer outras sociedades que o Conselho Monetário Nacional desejar que o sejam, "em razão da natureza de suas operações".


6. O SIGILO BANCÁRIO NA VISÃO DA JURISPRUDÊNCIA E DO STF


O STF já se manifestou, por diversas vezes, sobre o sigilo bancário, conforme se noticiou neste trabalho. Recentemente, inclusive, por ocasião das CPIs do Congresso Nacional o tema foi bastante reavivado. Em todas essas ocasiões, a Corte considerou presente na Constituição o princípio da privacidade da atividade econômica, abarcando o sigilo bancário. Os acórdãos são de fácil acesso e, por essa razão, nos abstemos de transcrevê-los aqui.
A novidade fato-política, dessa vez, é a existência de lei complementar e grande marketing governamental, que exigirá enérgica tomada de posição da comunidade jurídica nacional, pela qual clamaria e chamaria GERALDO ATALIBA, se ainda estivesse entre nós.


7. CONCLUSÃO: FICÇÃO E REALIDADE


Ainda que o objetivo alegado pelo Governo seja altamente meritório, como o é, indiscutivelmente, o de alcançar os sonegadores, não se justifica a implosão de princípios e garantias constitucionais, cujo rompimento, uma vez aceito, deixará a comunidade jurídica nacional e toda a sociedade refém de argumentos meramente econômicos, os quais serão, para sempre e sempre, suficientes para provocar qualquer mutação constitucional. 


Além do mais, havendo a possibilidade de obtenção das informações desejadas pela administração tributária, através do Judiciário, não se compreende tamanho desleixo e descaso do Congresso Nacional para com as garantias estatuídas pelo Poder Constituinte Originário. Mormente, sem discussão aberta com a sociedade, sobre a supressão de garantia tão delicada e a aceitação pelo Parlamento, sem maior investigação, da suposta necessidade que o Governo diz ter na remessa imediata e imotivada dessas informações. 


A pretensão do Governo, portanto, é tornar realidade a obra de ficção "1984", 60 de George Orwell, cuja narrativa se passa em um Estado totalitário, dominado pelo "Partido", cuja identidade materializa-se no "Grande Irmão", que a tudo olha, tudo vê e tudo descobre. O tipo de Estado que aterrorizava Ihering e Cappelletti, que atemorizou Kelsen e Max Weber e que preocupou tantos outros, não citados aqui. O Estado que oprime, devassa e sufoca o cidadão e quer saber exatamente onde, quando, como, por que e, se possível, com quem se fez determinada despesa. 


Já em 1992 fazíamos essa inevitável analogia entre realidade e ficção, em artigo publicado no jornal Zero Hora (25.02.92), quando o Governo ameaçou, não pela primeira vez, é verdade, o sigilo bancário, obrigando, através de portarias, as administradoras de cartões de crédito a fornecerem os extratos das operações de seus clientes ao Fisco. Evidentemente, daquela vez não foi difícil barrar a intenção totalitária nos tribunais, até mesmo pela ingenuidade, daquele Governo, de tentar derrubar a instituição do sigilo bancário através de portarias.


Desta feita, entretanto, a missão de proteger a privacidade dos cidadãos é bem mais difícil, pois o marketing governamental é digno de doutores e este Congresso Nacional, sempre cordato com o Poder Executivo, aprovou uma lei complementar nesse sentido. Resta-nos a Constituição e a força que dela emana e que para ela retorna, toda vez que ela é atacada e sai vencedora da peleja. Tomara que o nosso destino não seja o mesmo de Winston, o personagem principal de Orwell, que, "convencido" pela tortura, pela humilhação e pela certeza que de nada adiantava lutar, capitulou e convenceu-se, a si mesmo, que amava e idolatrava o "Grande Irmão", seu algoz invisível.

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