A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DANO MORAL - Patricia Ribeiro Serra Vieira
Doutora em Direito Civil pela UERJ e Professora Titular da UCAM.
SUMÁRIO: I - Apresentação do tema; II - Mensuração do dano moral; III - Tendências; IV - Aspectos conclusivos; Bibliografia.
I - APRESENTAÇÃO DO TEMA
A CF/88 é um marco no que respeita à ampla efetividade de seus princípios, afeiçoados como direitos subjetivos. Neste sentido, o dano moral manifesta-se como violador da dignidade da pessoa humana, um dos pilares do Estado democrático de direito, tal como informado no art. 1º, III, daquele texto magno. 1
Para os doutrinadores e julgadores brasileiros, o ressarcimento do dano moral é ainda um desafio a ser superado, apesar de, desde 1916, em obediência à mera interpretação técnica, o Código Civil ensejar essa possibilidade, pela aplicação de seus arts. 76 e 159.
O art. 159 do CC expressa que "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano". 2 Em defesa da aplicação do dispositivo no resguardo de bem de natureza não-patrimonial, GLACI DE OLIVEIRA VARGAS assim se pronuncia: "a designação dano, que alimentava discussões na doutrina sobre a sua extensão, isto é, ora com reflexos no patrimônio material, ora no patrimônio moral, hoje não permite prosperar qualquer dúvida, pois este artigo do CCB encontra-se inteiramente recepcionado pelo princípio da reparação do dano moral inserto na CF. Mas o texto legal, sem qualquer embaraço, já demonstrava um conceito de dano. Ao incluir a expressão prejuízo causado está o legislador a endereçar a lesão a bem material e, ao usar violar direito, sem dúvida, a um bem não patrimonial. Como conseqüência, o direito de reparação advém tanto de um prejuízo como de uma violação ou, mesmo, de ambos. Desta maneira, quando se trata de dano moral, não se pode falar em reparação natural, ou seja, em indenização propriamente dita, mas em sanção satisfativa ou compensatória". 3
A aversão ao ressarcimento do dano moral não poderia se sustentar nos tribunais brasileiros diante de um caso concreto. Inicialmente, em período anterior ao advento da CF/88, parte da doutrina alegava a falta de fundamentação legal - o que, veremos a seguir, não poderia prosperar - e a impossibilidade de cumulação dos danos material e moral, tendência expurgada pela institucionalização da Súm. 37 do STJ, que exalta a cumulação.
A extensão do art. 76 do CCB nos oferece não só a previsão legal do dano moral, mas, também, a possibilidade de utilização da via judicial, por anunciar que, para propor ou contestar uma ação, é necessária a prova de interesse econômico ou moral, apesar da restrição à legitimação para agir em juízo nos casos em que "o interesse moral toque diretamente ao autor ou à sua família" (parágrafo único do art. 76 do CC).
O dano moral se configura, em razão de ato ilícito ou do desenvolvimento de atividades consideradas de risco, pela ocorrência de distúrbios na psique, na tranqüilidade e nos sentimentos da pessoa humana, abalando a sua dignidade. 4
A tese do dano moral expõe a efetiva garantia de direitos de personalidade, elevados à categoria de fundamentais para a proteção integral do ser humano. Daí a própria CF, em seu art. 5º, V e X, respectivamente, ter garantido o direito de resposta proporcional ao agravo e apregoado a inviolabilidade da vida privada, da intimidade, da honra e da imagem da pessoa, asseverando o direito à indenização por dano material, moral, ou à imagem decorrentes da sua violação.
O valor da vida humana, integrando-se neste tópico todos os demais direitos inerentes ao homem, deve ser aferido visando à proteção integral do ser humano. Logo, o arbitramento do quantum indenizatório pelo juiz, de acordo com as circunstâncias do caso, deve privilegiar o emprego de um conjunto de variáveis que expressem o reflexo do dano nos patrimônios imaterial e/ou material da pessoa. 5
Para que se verifique um adequado e dinâmico funcionamento de todo o sistema civil brasileiro, os preceitos constitucionais, concebidos como cláusulas gerais de preservação da dignidade humana e consagração da solidariedade social, tornaram-se os verdadeiros pilares do ordenamento jurídico. O Prof. GUSTAVO TEPEDINO elucida, com singular maestria, que "A prioridade conferida à cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III, CF), fundamentos da República, e a adoção do princípio da igualdade substancial (art. 3º, III), ao lado da isonomia formal do art. 5º, bem como a garantia residual estipulada pelo art. 5º, § 2º, CF, condicionam o intérprete e o legislador ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte. Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, formada como valor máximo pelo ordenamento". 6
O Direito Civil, recepcionado pelo texto constitucional a partir da realização dessas cláusulas gerais citadas, é instrumento para alcance de um verdadeiro Estado democrático de direito.
II - MENSURAÇÃO DO DANO MORAL
No Brasil, em situações de prejuízo moral que venham a acarretar pedido de indenização, tem-se observado, nos tribunais, com aparente harmonia, a adoção de critérios relativos à posição socioeconômica tanto da vítima quanto do ofensor, delimitando-se valor indenizatório razoável à inibição do enriquecimento sem causa pela vítima. 7
Não se pode negar, contudo, que a problemática da valoração e, em conseqüência, da liquidação do dano moral, é extremamente distinta e complexa. O Prof. italiano ANTONIO PROCIDA MIRABELLI DI LAURO, quando da abordagem do tema dos danos contra a pessoa, ponderou que "a individuação do parâmetro de valoração e de liquidação constitui o problema mais delicado e complexo. O rigor científico e a objetividade do modelo conferem racionalidade e coerência ao sistema inteiro de reparação". 8
A liquidação do dano moral, ou seja, a mensuração do prejuízo em pecúnia como forma de compensar a dor ou o sofrimento do ofendido - o que não deve ser confundido com o retorno ao status quo ante (situação socioeconômica da vítima em fase anterior à ocorrência do evento lesivo) - deve estimular a consecução de uma situação equânime às partes.
Não há critérios científicos a serem adotados para que se liquide o dano moral, constatamos que os modelos consagrados em leis esparsas - verdadeiros limitadores indenizatórios (Lei de Imprensa, Lei Penal, Código Brasileiro de Telecomunicações, entre outros) - vêm sendo assimilados e extensivamente empregados em inúmeros casos que envolvem essa modalidade de dano. Não há limites indenizatórios para o dano moral. "... Ingressa-se, aqui, em área de controvérsias e dificuldades. A Lei de Imprensa (L. 5.250/67) e o Código Brasileiro de Telecomunicações (L. 4.117/62) previam, respectivamente, em seus arts. 49 a 57 e 79 a 81, um sistema de tarifação, até 100 salários mínimos, admitindo-se o dobro em caso de reincidência. Tendo em vista, entretanto, consagrar a CF a reparação do dano moral, amplamente, tem-se entendido não mais prevalecerem limites a seu ressarcimento. Procede a exegese". 9
Os julgados que reverenciam parâmetros valorativos contidos em lei se baseiam em ensinamentos retrógrados e positivistas, visto que o dano moral não é estimável por critérios monetários preestabelecidos. Defendemos ser a indenização por dano moral um alento à pessoa vitimada, na busca de sua plena realização existencial.
III - TENDÊNCIAS
A doutrina e a jurisprudência brasileiras estimulam o emprego de dois critérios, designados como o da compensação e o da punição. É preciso, contudo, lembrar que, pela natureza civil do dano, a fixação de indenização a título de danos morais deve obedecer, prioritariamente, a pressupostos que tenham como referência os reflexos intrínsecos na vítima.
O critério da punição se vale da condição financeira do ofensor, revelando a "teoria do valor do desestímulo". 10 ASSIS NETO condena esta tese, opondo que, "com efeito, como já disse anteriormente, a indenização por danos morais não pode se transformar em fonte de renda para o ofendido, mas ser simplesmente uma compensação para a dor moral experimentada. Lembra, ainda, PINHEIRO MARÇAL, que são conhecidas as indenizações milionárias concedidas pela Justiça dos Estados Unidos da América, que acarretam, no povo norte-americano, o temor de que qualquer evento possa provocar a responsabilidade civil, citando o exemplo de pais que se recusam a receber, em suas residências, colegas de seus filhos sem que estes portem termos que os isentem de responsabilidade por qualquer acidente que eventualmente ocorra durante o dia, e outros absurdos que sabiamente ocorrem no cotidiano daquele país. A punição ao ato ilícito é tarefa confiada à justiça criminal. Não podemos nos basear em punições na esfera civil, com o intuito de prevenir o acontecimento de novas condutas danosas, impondo indenizações espalhafatosas que não condizem com a realidade do dano moral que foi impingido à vítima. Tanto é assim que a punição é analisada e estudada pelas regras do Direito Penal, ramo eminentemente público da ciência jurídica, onde o que se protege é o interesse geral da sociedade, sendo que a pena é uma resposta estatal ao criminoso, desde que suficiente para a prevenção e a reprovação do crime, sem embargo da sua natureza reeducadora". 11
Na estruturação de um "Direito de danos" 12 neste milênio, diversos sistemas jurídicos ampliam a extensão do dano, pela influência de significativos fatores, entre os quais destacamos a projeção do dano moral às pessoas jurídicas, a conjugação do dano moral à matéria contratual, a fixação, em separado, de montantes indenizatórios que anteriormente eram estabelecidos em conjunto (v.g., o dano moral e o dano estético) e o aspecto punitivo do dano moral. Já o art. 944 da L. 10.406/02 - Novo CCB - traz, como regra geral à liquidação do prejuízo, que a indenização será medida pela extensão do dano.
IV - ASPECTOS CONCLUSIVOS
O arbitramento é método hábil de liquidação a incitar o assentamento da cultura de ressarcimento do dano moral, como forma de dignificar a pessoa vitimada. Com este propósito, a CF/88 ampliou a indenização a título de dano moral, afastando a possibilidade de adoção de critérios limitadores dessa reparação.
A jurisprudência brasileira, em sua maioria, privilegia a projeção econômica da pessoa em detrimento de sua real dimensão subjetiva.
Contudo, reiteramos que os tribunais vêm se ajustando para que a mensuração do valor indenizatório, por ofensa moral, se faça por arbitramento, segundo a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade às circunstâncias do caso, considerando a gravidade do dano, a condição pessoal da vítima, a capacidade econômica do ofensor, aos quais deve ser agregado, por eqüidade, o grau de afetação à dignidade da pessoa humana, entre outras variáveis circunstanciais.
Assim, sobreleva-se a necessidade de contextualização do dano, pelo aprofundamento na apuração da lesão moral, na consideração de aspectos biológicos, psíquicos e espirituais da vítima. O direito contemporâneo invoca o tema da responsabilidade como substitutivo da reparação, o que dá sustentáculo à absorção do dano moral como absolutamente indenizável.
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Artigos:
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Jurisprudência (não contida nas obras supracitadas):
BRASIL, 4ª Turma do STJ. REsp Processo nº 2001.0086476-0. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior. 23.03.2002. Sítio "http://www.stj.gov.br".
BRASIL, 4ª Turma do STJ. REsp Processo nº 2001.0009981-5. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. 23.03.2002. Sítio "http://www.stj.gov.br".