ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - TEORIA DA SITUAÇÃO IRREGULAR E TEORIA DA PROTEÇÃO INTEGRAL - AVANÇOS E REALIDADE SOCIAL - Daniel Carnio Costa

Juiz de Direito na Comarca de Miguelópolis/SP.

SUMÁRIO: I - Introdução; II - Doutrina do Direito Penal do Menor, Doutrina da Situação Irregular e Doutrina da Proteção Integral; a) Doutrina do Direito Penal do Menor; b) Doutrina da Situação Irregular; c) Doutrina da Proteção Integral; III - Antecedentes do Estatuto da Criança e do Adolescente (Evolução e Amadurecimento da Doutrina da Proteção Integral); IV - Avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente; V - Realidade Social; Bibliografia.

I - Introdução


Antes de adentrarmos ao estudo do direito da infância e da juventude, de seus institutos e correntes doutrinárias informadoras, faz-se necessário uma breve digressão histórica sobre o tratamento legal das crianças e adolescentes no Brasil enquanto Estado independente.


O Código Criminal do Império (1830) já tratava da responsabilidade penal dos menores, classificando-os em quatro categorias, segundo a idade e o grau de discernimento. Assim, os menores de 14 anos eram considerados inimputáveis, devendo ser recolhidos às casas de correção. Aqueles que fossem maiores de 14 e menores de 17 anos eram considerados imputáveis, mas receberiam penas abrandadas (cumplicidade). Os maiores de 17 e menores de 21 anos também eram considerados imputáveis, mas pendia em seu favor a atenuante genérica da menoridade. Após os 21 anos atingia-se a imputabilidade plena.


Entretanto, adotando o critério do discernimento, o Código do Império previa que, na hipótese do menor de 14 anos praticar fato delituoso com consciência e capacidade de entendimento, seria reconhecido como imputável e receberia, então, penas corporais.


O CP de 1890 alterou em alguns aspectos a legislação anterior, prevendo que os menores de 9 anos de idade, em hipótese alguma, poderiam ser considerados imputáveis. Esses eram tratados como não criminosos. Inovou, também, ao criar os estabelecimentos disciplinares industriais para encaminhamento dos maiores de 9 e menores de 14 anos que praticassem ilícitos com discernimento sobre sua conduta.


Até então não havia uma legislação específica para o tratamento da questão dos menores, sendo a matéria incluída, sem qualquer distinção, nos "Códigos Penais".
O D. 439, de 31.05.1890 estabeleceu as bases para a organização da assistência à infância desvalida. Em seguida, o D. 568, de 12.08.1890 baixou o regulamento para o Asilo de Meninos Desvalidos.


Somente em 1927 sobreveio o primeiro Código de Menores brasileiro, tratando, apenas, sobre as medidas aplicáveis aos menores de 18 anos pela prática de fatos considerados infrações penais.


Na seqüência, veio a L. 4.518/64, estabelecendo a política nacional de bem-estar do menor.


Posteriormente, foi promulgado o Código de Menores aprovado pela L. 6.697/79, que tinha como alvo os menores em situação irregular.


Atualmente, como é da sabença de todos, vige entre nós o ECA (L. 8.069 de 13 de julho de 1990) que, revolucionando em termos doutrinários e legislativos, rompeu com a doutrina da situação irregular e adotou a doutrina da proteção integral.
Perceba-se que, ao longo do tempo, as legislações utilizaram-se de três doutrinas menoristas distintas, quais sejam, a teoria do Direito Penal do Menor, a teoria da Situação Irregular e a teoria da Proteção Integral.


Vejamos cada uma delas, em suas características básicas.


II - Doutrina do Direito Penal do Menor, Doutrina da Situação Irregular e Doutrina da Proteção Integral


a) Doutrina do Direito Penal do Menor


Dissertando sobre as escolas que se formaram ao longo da história em torno do assunto, o Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA assim definiu a doutrina do Direito Penal do Menor: "Pela doutrina do Direito Penal do Menor, seria contemplado apenas o ato de delinqüência eventualmente praticado pelo menor". (O Direito e a Justiça do Menor, RT 650:12)


Trata-se da teoria que informou as legislações do século passado e do início do presente século. É evidente sua influência no Código Criminal do Império, no CP de 1890 e no primeiro Código de Menores de 1927.


Nesses diplomas legais, a questão do menor era tratada apenas sob o ângulo da delinqüência.


b) Doutrina da Situação Irregular


A doutrina da situação irregular representou um avanço em relação à doutrina anterior, ampliando os termos da tutela dos menores.


Comentando essa evolução, assim se manifestou SÁLVIO DE FIGUEIREDO: "Desprezando estas duas teorias, melhor andou o legislador brasileiro ao adotar a doutrina do menor em situação irregular, exposta exaustivamente no art. 2º, do Código, e limitando, por outro lado, os etiquetamentos de 'menor abandonado', 'infrator', 'delinqüente', 'exposto', etc.". (Op. cit., p. 13)


Propõe que a proteção estatal deve dirigir-se à erradicação da irregularidade da situação em que eventualmente se encontre o menor e buscar meios eficazes de prevenção, sempre com a preocupação de assistência, proteção e vigilância aos menores.


Nesse sentido, o direito do menor seria o ramo da ciência jurídica voltado prioritariamente para o menor em situação irregular.


Essa foi a doutrina encampada expressamente pelo Código de Menores de 1979.
O termo "situação irregular" era utilizado para definir situações que fugiam ao padrão normal da sociedade.


O Código de Menores, em seu art. 2º, definia dez hipóteses ou situações que configuravam a irregularidade da situação do menor. Assim, por exemplo, considerava-se em situação irregular os menores abandonados, vítimas de maus-tratos, miseráveis, além dos infratores.


Somente nessas hipóteses a criança ou o adolescente encontravam-se sob a tutela da então legislação menorista. O pressuposto de aplicação da lei seria o não-enquadramento do menor na sociedade regular.


c) Doutrina da Proteção Integral


Trata-se da doutrina adotada expressamente pelo ECA, logo em seu primeiro artigo.
O desenvolvimento das ciências que estudam a questão das crianças e dos adolescentes, como o direito, a pedagogia e a medicina, dentre outros, fundamentou a criação de uma doutrina que superasse os estreitos limites pugnados pela doutrina da situação irregular.


A nova doutrina foi denominada de "Proteção Integral", por propor que a família, a sociedade e o Estado são obrigados a propiciar aos menores o respeito a todos os seus direitos fundamentais de cidadãos e de pessoas em desenvolvimento.
Dois são os pontos cardeais dessa nova vertente doutrinária:


a) os seres humanos com menos de 18 anos possuem direitos iguais àqueles que também são consagrados aos adultos e, além disso, direitos que lhe são peculiares, considerando sua especial condição de pessoas em desenvolvimento ou em formação;
b) a família, a sociedade e o Estado são solidariamente responsáveis pela garantia de tais direitos.


A doutrina da proteção integral, segundo conceito muito bem elaborado por ANTÔNIO CARLOS GOMES DA COSTA (Diretor Executivo da Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência), "afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade do seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade, o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos" ("Natureza e Implantação do Novo Direito da Criança e do Adolescente", publicado no livro Estatuto da Criança e do Adolescente - Estudos Jurídicos-Sociais; Ed. Renovar; p. 19).


Propõe que o direito deve garantir a satisfação de todas as necessidades das crianças e adolescentes, não só no que se refere ao aspecto penal do ato praticado pelo ou contra o menor, mas, também, em relação ao seu direito à vida, à educação, à saúde, convivência, lazer, liberdade, etc.
A CF de 1988, de forma inovadora, tratou da questão da criança e do adolescente com prioridade total, impondo sua proteção como dever da família, da sociedade e do Estado.


Afirma-se, assim, que a própria Carta Magna proclamou a doutrina da proteção integral, revogando de forma implícita a legislação menorista da época e exigiu, dessa forma, a confecção de uma nova lei compatível com seus termos. 
O ECA, ao encampar a proteção integral, consagrou os princípios do legislador constitucional.


Segundo MUNIR CURY e ANTÔNIO FERNANDO DO AMARAL E SILVA: "Ao romper definitivamente com a doutrina da situação irregular, até então admitida pelo Código de Menores (L. 6.697, de 10.10.1979), e estabelecer como diretriz básica e única no atendimento de crianças e adolescentes a doutrina de proteção integral, o legislador pátrio agiu de forma coerente com o texto constitucional de 1988 e documentos internacionais aprovados com amplo consenso da comunidade das nações" (Estatuto da Criança e Adolescente Comentado - Comentários Jurídicos e Sociais - Coordenadores: Munir Cury, Antônio Fernando do Amaral e Silva e Emílio Garcia Mendez; 3ª edição; Malheiros; p. 12).
III - Antecedentes do Estatuto da Criança e do Adolescente (Evolução e Amadurecimento da Doutrina da Proteção Integral)


O embrião da doutrina da proteção integral começou a germinar no início do século, com a Declaração de Genebra. Naquela época, no Brasil, ainda adotava-se a teoria do direito penal do menor.
A Declaração de Genebra de 1924 já determinava a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em Paris, no ano de 1948, reclamava o direito a cuidados e assistências especiais aos menores.
A Convenção Americana sobre os Direitos Humanos de 1969, conhecida como "Pacto de San José da Costa Rica", dispunha que toda criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado.


As Nações Unidas, em 29.11.1985, publicou as Regras Mínimas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude, conhecidas como Regras de Beijing (Res. 40/33 da Assembléia Geral).


Mais recentemente, a Assembléia Geral da ONU, em 1990, publicou as Diretrizes para a Prevenção da Delinqüência Juvenil, conhecida com Diretrizes de Riad, bem como as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade.


Entretanto, noticia-se que a raiz mais próxima da doutrina da proteção integral é a Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembléia-Geral da ONU em 20.11.1989.


Tal convenção foi admitida como direito interno brasileiro através do Dec. Legislativo 28, em 14.09.1990, promulgado pelo Presidente da República em 21.11.1990 (D. 99.710).


Essas convenções e documentos internacionais formaram o ambiente jurídico, social e político necessários para a construção de um novo direito relativo às crianças e adolescentes. 


Nesse sentido, comentam MUNIR CURY e ANTÔNIO FERNANDO DO AMARAL E SILVA: "Segundo informações oficiais de Semenkov (URSS), Manchester (Reino Unido) e Chen Jiang Guo (República Popular da China) durante o XIII Congresso da Associación Internacional de Magistrados de la Juventud y de la Familia, realizado em Turim (Itália) no período de 16 a 21.09.1990, 'no mundo todo, sem exceção, estão-se efetivando investigações com a finalidade de melhorar e renovar os métodos de assistência'.


É nesse sentido que a CF de 1988, pela primeira vez na história brasileira, aborda a questão da criança como prioridade absoluta, e a sua proteção é dever da família, da sociedade e do Estado". (Op. cit., p. 11)


No Brasil, criou-se uma intensa mobilização em torno de implementar as conquistas em favor da infância e da juventude já consagradas pelos diplomas internacionais acima referidos.


Durante a Assembléia Nacional Constituinte, toda essa mobilização resultou, principalmente, em duas emendas populares apresentadas ao Congresso com mais de duzentas mil assinaturas de cidadãos adultos e de um milhão e duzentas mil assinaturas de crianças e adolescentes.


Essas duas emendas, conhecidas como "Criança Constituinte" e "Criança Prioridade Nacional", resultaram nos textos dos arts. 204 e 227 da CF de 05.10.1988, que elencam direitos inovadores em favor da infância e da juventude brasileira.


O art. 227 da CF/88 pode ser considerado como o elemento de ligação entre a Carta Magna e a Convenção de Direitos da Criança (ONU, 1989).


O Código de Menores de 1979, por adotar doutrina diferente e incompatível com a proteção integral, acabou não sendo recepcionado pelo atual texto constitucional. Surgiu, então, a necessidade de criação de uma lei que concretizasse as conquistas obtidas e sedimentadas na nova constituição.


O ECA surgiu como a lei que concretizou e expressou os novos direitos das crianças e adolescentes assegurados pela CF.


Afirma-se que o Estatuto foi inovador, tanto em termos de concepção geral, pois adotou a teoria da proteção integral, rompendo com a tradição nacional e latino-americana, como também em termos de processo de elaboração.
A nova lei fugiu dos métodos tradicionais de elaboração legislativa no Brasil da época. Isso porque, foi uma lei que contou com intensa colaboração das várias camadas da sociedade, tanto no que se refere à elaboração, como em relação ao movimento de aprovação no Congresso.


O Fórum DCA (Fórum Nacional de Entidades Não-Governamentais) serviu de palco para o encontro de diversos movimentos e entidades, como a OAB, a ABRAPIA (Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência), a Pastoral do Menor da CNBB, o Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua, dentre vários outros. Todos juntaram forças no sentido de coordenar a elaboração e a aprovação do ECA.


O setor público também se articulou e se mobilizou para a aprovação da nova lei, merecendo destaque o Fórum Nacional de Dirigentes Estaduais de Políticas Públicas para a Criança e o Adolescente (FONACRIAD).

 

O resultado de toda essa mobilização social e política foi a aprovação do Estatuto, nas duas Casas do Congresso Nacional, por votação unânime das lideranças de todos os partidos representados no Parlamento.

IV - Avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente


Como conseqüência da adoção da teoria da proteção integral, pode-se elencar uma série de avanços em relação à legislação anterior que encampava a doutrina da situação irregular.


A CF e o ECA trazem avanços fundamentais quando conferem responsabilidade solidária à família, à sociedade e ao Estado no que se refere a proteção dos direitos das crianças e adolescentes e passam a considerá-los como sujeitos de direitos, pessoas em desenvolvimento e com prioridade absoluta.


A Proteção Integral, ao estabelecer a responsabilidade solidária da família, da sociedade e do Estado na proteção aos direitos e garantias da criança e do adolescente procurou garantir aos menores o respeito e a efetivação dos direitos a eles conferidos, inclusive em nível constitucional, porquanto se a família faltar ou falhar, acorre-se à sociedade, através de suas entidades e, na falta dessas, socorre-se do Estado.


Estabelecendo que os menores de 18 anos são pessoas que possuem todos os direitos de qualquer pessoa e mais aqueles que lhe são peculiares enquanto pessoas em desenvolvimento físico e mental, a nova doutrina passa a fundamentar que novos direitos se incorporem ao patrimônio das crianças e adolescentes.


A condição de pessoas em desenvolvimento era tratada pela legislação anterior como um fator "restritivo de direitos", ao passo que à luz da nova doutrina representa um fator de incorporação de novos direitos. 


A doutrina do Direito Penal do Menor tratava a questão apenas do ponto de vista da delinqüência, não acrescendo direito algum às crianças e adolescentes. Previa exclusivamente a tutela penal dos menores.


A doutrina da situação irregular, por sua vez, tratava os menores, primordialmente, como objeto de tutela, vale dizer, como pessoas que mereciam assistência e proteção, mas somente quando se encontrassem em situação irregular. Relativamente às crianças e adolescentes que não se achavam em situação irregular, nada acrescentava a legislação em termos de direitos.
Então, a adoção da proteção integral, pode-se dizer, representou um avanço cultural da sociedade, reconhecendo os menores como parte integrante da família e da sociedade, com direito ao respeito, a dignidade, a liberdade, a opinião, a alimentação, ao estudo, etc.


Não seria exagero afirmar que a nova doutrina criou um novo sujeito de direitos, pois é dessa forma que as crianças e adolescentes são tratados no Estatuto.
A prioridade absoluta significa que os menores têm preferência em relação a qualquer outra pessoa no que se refere, por exemplo, ao atendimento por serviço ou órgão público de qualquer dos poderes, às políticas sociais públicas e à destinação de recursos públicos para a proteção da infância e da juventude. 
Além dos avanços relacionados à doutrina da proteção integral acima já analisados, existem outros que também são dignos de nota.


A doutrina da Proteção Integral prevê que todas as crianças e adolescentes são protegidas pelas disposições do ECA e não mais apenas aqueles que estivessem em situação irregular, representando uma ampliação da destinação da lei.
O ECA preocupou-se com os direitos fundamentais garantidos pela CF e desceu a detalhes na sua regulamentação. Assim, visou a proteção integral dos menores, que tem início já na fase gestacional, com a proteção e tutela da mãe, seguindo o menor ao longo de seu desenvolvimento até chegar a vida adulta.
Estabelece-se, pois, na área de saúde, as garantias dos exames gestacionais e do teste do pezinho. Além disso, garante-se a educação pública e gratuita, a proteção ao trabalho, etc.


O Estatuto, à luz da proteção integral, criou um verdadeiro sistema de garantia de direitos, distribuindo com muita propriedade competências e atribuições entre os agentes do Estado de acordo com suas funções.


Nesse sentido, conferiu-se ao Juiz da Infância e da Juventude a competência exclusiva para o julgamento de causas que envolvem os direitos das crianças e dos adolescentes, sejam os conflitos individuais, coletivos ou difusos, estejam elas ou não em situação irregular. Passa o Juiz apenas a exercer sua função jurisdicional, funcionando somente como autoridade judiciária, diferentemente do sistema do Código de Menores.


Estabeleceu, ainda, uma série de garantias em relação à prisão e ao procedimento de apuração de ato infracional, todos adequados à nova ordem constitucional, em obediência aos princípios da ampla defesa e do contraditório.
O MP ganhou inúmeras e importantes funções, até porque o projeto do Estatuto foi gerado a partir de proposta do Parquet.


Foram criados os Conselhos de Defesa de Direitos e os Conselhos Tutelares.
Os Conselhos de Defesas de Direitos são órgãos do Poder Executivo nacional, estadual e municipal, com atribuição de deliberar sobre as políticas, ações e projetos do poder executivo, em diversas áreas, como educação e saúde, dirigidas à defesa dos interesses da criança e do adolescente. Não tem, porém, função de executar os referidos programas, o que deve ser feito por outros órgãos do executivo.


Os Conselhos Tutelares existem apenas nos Municípios e são órgãos de execução de ações e projetos dirigidos à proteção dos direitos da criança e do adolescente. Exercem parcela de poder (não jurisdicional) e têm autoridade para promover a execução de suas próprias decisões. O Estatuto, no intuito de conferir eficácia à decisões dos Conselhos, previu a possibilidade de representar à autoridade judiciária nos casos de descumprimento injustificado de suas deliberações.
Perceba-se, nesses dois casos, que há distribuição da responsabilidade solidária (proteção integral) entre Estado e sociedade.


Parte da doutrina menorista classifica as inovações trazidas pelo ECA em três grandes grupos: mudanças de conteúdo, mudanças de método e mudanças de gestão.


Relativamente ao conteúdo, o Estatuto acrescenta novos elementos às políticas públicas para a infância e a juventude. Prevê uma nova política de atendimento muito mais ampla, envolvendo as questões de natureza legal, médica, psicossocial, etc.


No que tange ao método, o Estado substituiu o assistencialismo vigente por propostas socioeducativas baseadas nas noções de cidadania e considerando a condição dos menores como pessoas em desenvolvimento.


Em relação à gestão, promoveu uma nova estrutura de política de promoção e defesa dos direitos da infância e da juventude baseada na descentralização político-administrativa e na participação da sociedade através de suas organizações representativas.

De fato, analisando as principais inovações acima já elencadas, pode-se classificá-las em um dos grandes agora referidos.


V - Realidade Social


O ECA, como já visto ao longo do presente trabalho, é legislação moderna e revolucionária em seus novos conceitos. Possui, é certo, um compromisso sério e drástico de mudanças na nossa realidade em relação à questão do menor.
A tendência trazida pela nova ordem constitucional e pelas normas estatutárias é de resgate dos direitos da nova geração, com o objetivo de construção de uma sociedade mais justa e democrática num futuro próximo.


Entretanto, a realidade social brasileira em relação ao tratamento da criança e do adolescente, é bastante dura e dramática. Atualmente, a situação social do país, infelizmente, não se encontra melhor do que há 20 anos. Ao contrário, as dificuldades e crises financeiras acabaram por agravar os problemas sociais, levando de roldão a infância e a juventude nacionais.


Segundo nos informa ANTÔNIO CHAVES:


"A Comissão Parlamentar de inquérito instituída no Congresso Nacional para levantar o problema do menor carente - constata JOÃO BENEDICTO DE AZEVEDO MARQUES - chegou em 1976 a dados, verdadeiramente alarmantes, que até hoje não mereceram a suficiente divulgação para uma ampla análise e debate da sociedade brasileira, visando corrigir a mais grave injustiça social, porque além de atingir seres indefesos afeta o futuro da nacionalidade:
'Feito um criterioso levantamento, em nível nacional, chegou-se aos seguintes dados: menores carentes - 13.542.508; menores abandonados - 1.909.570; menores infratores - 111.812.


Se considerarmos a faixa de dois salários mínimos de rendimento mensal familiar chegaremos à assustadora soma de 25 milhões de menores carentes, sendo que as regiões de maior incidência são o Nordeste, em razão do baixo padrão de vida da população e o Sudeste, por força das grandes concentrações urbanas, com seus tristemente famosos cinturões de miséria, representados pela favela e cortiços.


E, em São Paulo, segundo dados da Secretaria de Promoção Social de 1978, temos uma população de 3 milhões de menores carentes.


Os dados da UNICEF, do ano de 1980, referentes à população infanto-juvenil são, mais do que alarmantes, pois indicam: 53% de desnutridos, 8 milhões de deficientes; 87% sem pré-escola e 10.500.000 de abandonados.(...)


Em termos de Brasil, se considerarmos a cifra de 25 milhões de menores carentes, ganhamos das populações somadas da Argentina, Uruguai e Paraguai, o que deve ser motivo de preocupação e constrangimento'.

Essas cifras chocantes nos levam à conclusão de que possuímos uma imensidão de crianças fora daquilo que podemos chamar de democracia, relativa ou absoluta." (Com. ao ECA; LTr, SP, p. 409-410)
Considerando que os dados comentados no artigo citado datam de mais de vinte anos, sua espantosa atualidade é bastante preocupante.


A solução para a questão dos menores no Brasil já foi muito discutida e ninguém duvida de que a atual CF e o ECA são elementos importantíssimos nesse sentido.
Todavia, não é bastante o arcabouço jurídico. É preciso colocá-lo em prática, efetivando de forma concreta as conquistas no campo de direito.
É necessário mudar a mentalidade e a maneira de entender e agir das políticas públicas em relação à juventude, exigindo-se vontade política dos governantes e capacidade de articulação interinstitucional.


O novo modelo de atendimento e a criação de mecanismos de acompanhamento e avaliação pelo ECA requerem a capacitação de pessoas para operá-los adequadamente.


O Poder Público e a comunidade local devem ser os principais agentes na condução das políticas sociais destinadas às crianças e aos adolescentes.
Todas essas observações, juntas, formam um conjunto de soluções normalmente proposto pelos especialistas no que concerne ao problema da infância e da juventude brasileiras.


Entendo, porém, paralelamente a tudo que já foi dito, que dois são os pontos fulcrais no caminho da solução da questão do menor: a municipalização das políticas sociais em relação aos menores e a reestruturação da família.
A implantação da política de proteção integral nos Municípios, nos termos já previstos no Estatuto, me parece a solução viável para iniciar a correção da problemática do menor.


Isso porque, todos moramos nas cidades ou Municípios, sendo o Estado e a União entidades meramente abstratas. Nesse sentido, o gerenciamento e a aplicação das políticas sociais deve ser centrado nos Municípios, como forma de se atingir uma eficiência muito maior no trabalho pretendido.


Por outro lado, entendo que a reestruturação da família é um fator decisivo para a solução da problemática do menor no Brasil.


O ECA prevê que é direito básico dos menores a convivência no seio de sua família natural, sendo medida de exceção a colocação em família substituta.
Assim dispõe porque imagina que a família é o local onde a criança pode se desenvolver com naturalidade, introjetando valores tradicionais importantíssimos que lhe são passados pelos seus pais e antepassados. Dentro do seio da família, a pessoa cresce e se desenvolve não só fisicamente, mas intelectualmente e moralmente.


Pressupõe o ECA uma família sã, nos termos já propostos por RUI BARBOSA, o "Pai da Pátria".


RUI afirmou que a família é a célula-mater da sociedade e que tem por elementos orgânicos a honra, a disciplina, a benquerença e o sacrifício.
Todavia, a família é uma célula que se encontra doente.
Desde a década de 60 a família encontra-se em crise e, pouco a pouco, esse importantíssimo instituto vai se desintegrando, gerando efeitos negativos em toda a sociedade.


ALLAN BLOOM, em seu livro O declínio da cultura ocidental, afirma que "O delicado tecido da civilização, o qual as sucessivas gerações se entrelaçam, desfiou-se - e os filhos são criados, mas não educados" (Op. cit., Editora Best Seller, 1989, p. 71).


Trata-se da família da terceira onda tecnológica, utilizando-se o termo empregado por ALVIN TOFFLER em seu livro A terceira onda. Diversas formas de agrupamentos humanos são rotulados de família, como os casamentos homossexuais, comunas, variedades de redes íntimas, pais e mães vivendo em cidades ou países diferentes, etc.


Como então conferir à família a incumbência de criar e educar seus filhos se atualmente, no dizer de BLOOM, "o preparo moral da família se reduz a inculcar o mínimo dos mínimos do comportamento social" (Op. cit., p. 76)?
Uma família doente ou desestruturada não é capaz de cumprir com zelo a incumbência que lhe foi conferida pela nova ordem constitucional, em caráter prioritário.


Assim, a solução do problema da infância e da juventude deve passar necessariamente pela revitalização e fortalecimento do padrão de família, adequando-a, o quanto possível, aos novos valores dos tempos atuais.
A mídia, a igreja, os Tribunais e o sistema político, teriam, segundo ALVIN TOFFLER, importante função no trabalho de reestruturação da família desintegrada.


Esse é, pois, um resumo da situação atual da juventude brasileira e de algumas propostas de solução dos problemas existentes.
Resta evidente a gravidade do tema e a dificuldade da implantação de soluções viáveis.


Ninguém duvida, todavia, que o objetivo comum deve ser dar vida às disposições trazidas pela nova ordem constitucional e pelo ECA.


Bibliografia
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