A INDEVIDA RETENÇÃO DA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE AS REMUNERAÇÕES PAGAS ÀS SOCIEDADES DE PROFISSÃO REGULAMENTADA - Alessandro Frederico de Paula - Waldir Figueiredo Reccanello - Jorge Wadih Tahech
Alessandro Frederico de Paula
Pós-Graduando em Direito Previdenciário.
Waldir Figueiredo Reccanello
Pós-Graduando em Direito Civil.
Jorge Wadih Tahech
Especialista em Direito Tributário.
É de conhecimento da maioria daqueles que fazem parte de sociedades civis formadas por profissionais liberais que o INSS, devido ao emaranhado de leis e normas administrativas que se proliferam em nosso ordenamento, vêm exigindo a retenção, na fonte, das contribuições previdenciárias incidentes sobre as respectivas notas fiscais de prestação de serviço. Tal ato, em que pesem as boas intenções que permeiam a atividade daquela autarquia - reconhecidamente ávida por aumentar os fundos existentes em seus caixas (ou diminuir os rombos havidos em seu sistema) -, além de abusivo, configura-se como legalmente equivocado, devendo ser objeto de discussão. Senão, vejamos.
As equivocadas atitudes do INSS
Um dos princípios norteadores da atuação da administração tributária é o da moralidade pública (art. 37 da CF/88), em nome da qual os agentes fazendários, em qualquer grau de hierarquia e jurisdição, estão obrigados a observar um comportamento ético na interpretação das normas jurídicas aplicáveis no desempenho de suas atividades.
Inaceitável, portanto, que os agentes previdenciários, a seu exclusivo critério e com inobservância das normas legais, criem mecanismos de lançamento fiscal inexistentes no ordenamento das contribuições previdenciárias, a ponto de exigir obrigações de quem não as deve.
Conclusão semelhante já foi emanada pelo Supremo Tribunal Federal, conforme excerto de voto proferido pelo Min. MARCO AURÉLIO, ao advertir que “a relação jurídica Estado/contribuinte há de repousar, sempre, na confiança mútua, devendo ambos atuarem com responsabilidade, fiéis ao ordenamento jurídico em vigor”.1
Entretanto, e de modo estranho, a orientação preconizada pela Consultoria Jurídica do INSS é diametralmente oposta aos dizeres do eminente ministro. No Parecer CJ nº 1.457/98, a autarquia previdenciária, procurando justificar o procedimento fiscal adotado em cobranças de contribuições similares as aqui analisadas, não hesita em afirmar:
“Há, por certo, o risco de se recolher duplamente a contribuição social, mas o eventual prejuízo pode ser objeto de pedido de restituição, de compensação ou, na via judicial, de ação de repetição de indébito.”
Não fosse a intenção de esclarecer totalmente a matéria, nada mais precisaria ser dito. Entretanto, como o intuito desse estudo é tentar retirar as dúvidas existentes com relação à malfadada retenção equivocadamente exigida pelo instituto previdenciário, necessárias algumas considerações acerca do mérito de tais atitudes.
Conceito de sociedade civil/simples
A atividade civil, por sua natureza extremamente extensa, é passível de ser determinada mediante critério residual, visto que somente será considerada civil a atividade que não se enquadre como mercantil/empresária ou a esta não se equipare, por força de disposição legal.
As sociedades civis poderão ser constituídas para variados fins, com a possibilidade de ter ou não fins lucrativos. Nesse sentido, poderão ser simplesmente religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, sendo importante frisar que, ainda que uma sociedade civil persiga lucro, sua atividade continuará sendo civil, porquanto exercida sem interposição entre a produção e o consumo.2
Para tanto, a constituição de sociedades civis com finalidade lucrativa, sob a forma de empresas de prestação de serviços profissionais, mediante a adoção de tipos jurídicos caracterizados e definidos na legislação, deve seguir as normas constitutivas ditadas para tais tipos jurídicos.
Pois bem, o instituto da “sociedade civil”, recepcionado pela Lei nº 10.406/02 (novo Código Civil brasileiro) sob a nomenclatura de “sociedade simples”, destina-se a abrigar as sociedades não empresariais cujas atividades, especialmente vinculadas às pessoas de seus sócios, limitam-se à prestação de serviços profissionais.
Conforme entendimento doutrinário, o capital social das sociedades civis/simples pode ser representado por quotas de responsabilidade limitada, razão pela qual, em alguns exemplos, observávamos a expressão “S/C Ltda.”
Para que os sócios da sociedade simples/civil façam jus à limitação de sua responsabilidade, a denominação social de sua entidade jurídica deve, obrigatoriamente, incluir a palavra “Limitada” (ou “Ltda.”), sendo que, em caso contrário, terão responsabilidade solidária e ilimitada pelas obrigações que contraírem em nome da sociedade.
Essa situação é característica das sociedades de profissionais liberais, como, por exemplo, as formadas por médicos, advogados, contadores, engenheiros, vez que as referidas sociedades dependem necessariamente do trabalho personalista de seus componentes, os quais, com formação técnica adequada, serão necessariamente sócios-quotistas dessas sociedades.
Conforme determinações emanadas do novo Código Civil, as sociedades simples/civis adquirem “personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, de seus atos constitutivos” (art. 985),3 sendo que tal registro deverá ser efetivado perante o “registro civil das pessoas jurídicas do local de sua sede” (art. 998).4
Infere-se, então, que a sociedade simples/civil trata-se de pessoa jurídica de direito privado, com personalidade jurídica própria, passível de adquirir direitos e contrair obrigações totalmente distintas daquelas inerentes às pessoas de seus sócios integrantes.
Feitas essas hígidas considerações acerca da forma como foram recepcionadas pela lei civil, importante demonstrar neste ponto a natureza jurídica destas sociedades civis de profissionais no âmbito previdenciário.
Do conceito de empresa no direito previdenciário e suas obrigações
Diz o texto da Lei nº 8.212/91:
“Art. 15. Considera-se:
I - empresa - a firma individual ou sociedade que assume o risco de atividade econômica urbana ou rural, com fins lucrativos ou não, bem como os órgãos e entidades da administração pública direta, indireta e fundacional;
II - empregador doméstico - a pessoa ou família que admite a seu serviço, sem finalidade lucrativa, empregado doméstico.
Parágrafo único. Equipara-se a empresa, para os efeitos desta Lei, o contribuinte individual em relação a segurado que lhe presta serviço, bem como a cooperativa, a associação ou entidade de qualquer natureza ou finalidade, a missão diplomática e a repartição consular de carreira estrangeiras.” (Redação dada ao parágrafo pela Lei nº 9.876, de 26.11.1999, DOU 29.11.1999)
Basta uma simples leitura da norma em apreço para se perceber que as sociedades de profissionais, ou sociedades simples, foram recepcionadas pelo direito previdenciário como sendo parte integrante do conceito de empresa, e como tal, além de possuírem direitos e obrigações próprios e específicos de sua categoria, figuram como contribuintes obrigatórios, estando submetidas ao regime de recolhimento previsto nos arts. 22, 23 e 30 da Lei nº 8.212/91, cabendo-lhes, portanto, a obrigação de patrocinar o recolhimento das contribuições previdenciárias que estão a seu encargo, bem como fazer o recolhimento daquelas incidentes sobre a folha de salários pagos aos seus funcionários, ou sobre os honorários pagos aos profissionais que dela fazem parte.
Ainda, e com base no art. 201, § 5º, do Regulamento da Previdência, compete à sociedade civil/simples de prestação de serviços profissionais - relativos ao exercício de profissões legalmente regulamentadas -, observado o disposto no art. 225 e legislação específica, o recolhimento de 20% sobre: I - a remuneração paga ou creditada aos sócios em decorrência de seu trabalho, de acordo com a escrituração contábil da empresa, e II - os valores totais pagos ou creditados aos sócios, ainda que a título de antecipação de lucro da pessoa jurídica, quando não houver discriminação entre a remuneração decorrente do trabalho e a proveniente do capital social.
Ao estabelecer o fato gerador, a base de cálculo e as alíquotas para o recolhimento das contribuições previdenciárias a cargo das empresas, a Lei de Custeio não previu nenhuma hipótese de substituição tributária destas obrigações.
Ao contrário. A Lei de Custeio ao instituir tais exações acabou atribuindo-lhes caráter intuito personae, de modo que compete exclusivamente ao contribuinte de direito - no caso a empresa - a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações decorrentes, não sendo possível a transferência do encargo a terceiros.
Ou seja. Em se tratando da retenção de espécie do gênero substituição tributária, em que o contribuinte de fato seria o responsável direto pelo cumprimento das obrigações tributárias em nome do contribuinte de direito, não há dúvidas que sua ocorrência somente seria possível mediante expressa previsão legal.
Nesse passo, temos que serão passíveis de retenção, dentre outras, as hipóteses elencadas no art. 31 da Lei de Custeio,5 com as inovações introduzidas pela Lei nº 9.711/98, bem como as hipóteses previstas na Medida Provisória nº 83, convertida na Lei nº 10.666/03.6
Referidos estatutos legais determinam expressamente a obrigatoriedade da retenção, por parte dos tomadores de serviços, do percentual de 11% incidente somente para os casos de prestação de serviço por intermédio de cessão de mão-de-obra e para os casos de prestação de serviços por trabalhadores autônomos.
Concluindo e, no caso específico, tratando-se de sociedade com personalidade jurídica própria, formada por profissionais liberais que atuam na prestação de serviços específicos, sem que haja cessão de mão-de-obra, não havendo meios de enquadrá-la nas hipóteses legais acima previstas, tem-se que qualquer expediente de retenção que venha a ser patrocinado por ocasião do pagamento dos valores devidos a esta sociedade é, ou mostra-se, ilegal, devendo ser evitado a qualquer custo, sob pena de restituição forçada.
Mister ressaltar, ainda, que as determinações emanadas da Lei nº 9.876/99, que criou nova contribuição social destinada ao custeio da seguridade social a cargo, agora, da empresa tomadora dos serviços das cooperativas de trabalho, também não se aplicam à espécie, vez que referida norma, ao estabelecer a incidência previdenciária no percentual de 15% sobre o valor bruto da fatura ou nota fiscal, fê-lo exclusivamente com relação aos serviços prestados pelas cooperativas de trabalho, por intermédio de seus cooperados.
Em outras palavras, a Lei nº 9.876, de 26.11.1999, deu nova redação ao art. 22, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, criando a contribuição previdenciária de “quinze por cento sobre o valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços, relativamente a serviços que lhe são prestados por cooperados por intermédio de cooperativas de trabalho”, a cargos das empresas em geral, contribuição que veio substituir aquela antes prevista pela Lei Complementar nº 84/96, art. 1º, inciso II, que foi extinta pelo art. 9º da Lei nº 9.876/99 (TRF 3ª R. - AG 107.653 (2000.03.00.020824-1) - SP - 2ª T. - Rel. Juiz Conv. SOUZA RIBEIRO - DJU 15.07.2002 - p. 387).
Trata-se de contribuição antes não prevista na legislação, mas criada com fundamento no art. 195, I, a, da Constituição Federal (na redação dada pela EC 20, de 15.12.1998), tendo o legislador dado uma efetiva e regular aplicação do princípio do adequado tratamento tributário ao ato cooperativo, ao veicular contribuição incidente sobre o valor da remuneração da prestação de serviços pelos cooperados (pessoas físicas) e devida pelas empresas em geral, inclusive pelas sociedades civis formadas por profissionais.
Corroborando tal entendimento, tem-se, ainda, que, conforme prescreve o Regulamento do Imposto de Renda (art. 146, § 3º), as sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada são tributadas pelo imposto de conformidade com as normas aplicáveis às demais pessoas jurídicas, esvaziando ainda mais os possíveis fundamentos do INSS.
Diante de toda essa construção, fica mais do que evidente que tais disposições, por ilação lógica, além de não se estenderem às sociedades civis/simples, não estabeleceram qualquer hipótese de retenção previdenciária sobre os valores decorrentes dos serviços prestados por estas sociedades.
Conclusão
Assim, considerando as assertivas expostas e fazendo valer o entendimento de que as sociedades de profissionais submetem-se a direitos e obrigações próprias à sua condição, é de se concluir que resta totalmente impossibilitada a retenção de qualquer percentual sobre as faturas expedidas por essas sociedades prestadoras de serviços, em razão da inexistência de qualquer previsão legal que possa autorizá-la, sendo que eventual exigência do INSS deverá ser questionada e combatida veementemente por aqueles instados a cumpri-la.
Bibliografia
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