A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DOS SÓCIOS ADMINISTRADORES DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS E DE QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA - Fernando da Fonseca Gajardoni
Juiz de Direito em São Paulo
Mestre em Processo Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)
Professor de Processo Civil dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Franca (UNIFRAN)
A questão da responsabilidade tributária dos sócios e administradores das sociedades anônimas e das quotas de responsabilidade limitada, embora de grande relevância e de enorme incidência no âmbito dos Tribunais, não apresenta unanimidade, seja na doutrina, seja na jurisprudência.
Dispõe o art. 135 do Código Tributário Nacional, estrategicamente alocado em capítulo reservado à responsabilidade tributária de terceiros, que:
“Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes, ou infração da lei, contrato social ou estatutos:
I - ...
II - ...
III - os diretores, gerentes ou representantes das pessoas jurídicas de direito privado;”
E o art. 136 do mesmo estatuto - na seção do Código reservada à responsabilidade por infrações - arremata:
“Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade e extensão dos efeitos do ato.”
Em virtude desses dispositivos, duas posições vem sido sustentadas pelos estudiosos do tema.
A primeira delas, em benefício do fisco, no sentido de que, para infringir a lei e, consequentemente, passar a ser responsável pessoalmente pela exação fiscal, bastaria ao sócio, gerente ou administrador - aquele que detém o comando da pessoa jurídica - deixar de recolher o tributo na forma, no prazo ou no valor devido. Asseveram os defensores dessa tese que o art. 136 do CTN, o qual deve ser interpretado conjuntamente com o art. 135, III do mesmo “codex”, cria uma forma de responsabilidade objetiva, por substituição, dos administradores da empresa devedora, os quais, independentemente de culpa, dolo ou intenção de fraudar a lei, passariam a responder pessoalmente pela obrigação tributária constituída à época de suas atividades. Colacionam-se os seguintes julgados de apoio a essa tese:
“Tributário - Execução Fiscal - Penhora de Bens - Responsabilidade do sócio-gerente - (artigo 135, caput e III, 136, CTN). O sócio gerente de uma sociedade limitada, por substituição, é objetivamente responsável pela dívida fiscal, contemporânea ao seu gerenciamento, constituindo violação à lei o não recolhimento. (STJ, Resp nº 10.547-0 - RJ, Rel. Ministro Milton Pereira, Publicado em 05.09.1994, pág. 23.033, DOU)”
“O sócio gerente responde solidariamente e ilimitadamente por ato praticado com violação da lei, assim entendida a falta de pagamento, em época própria, de tributo... “ (TRF - 5ª Região - AC. 91.05.086.28/SE, Rel. Juiz Francisco Falcão, publicado em 03.05.1991, DJ)
Do outro lado - os contribuintes em especial - sustentam que não se pode responsabilizar os sócios gerentes pela obrigação tributária se não demonstrada cabalmente a infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos. Indicam que interpretação contrária e favorável ao fisco implicaria em cabal afronta à Lei nº 3.708/19 (Lei de Sociedade por quotas) e à Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades por ações), pois tais diplomas impõe aos sócios responsabilidade pessoal tão somente até a integralização das quotas ou subscrição do capital social. Em abono a esses posicionamentos:
“Execução fiscal. Sociedade de responsabilidade Ltda. Sócios. Art. 135 do CTN. Não respondem os sócios por dívidas contraídas por sociedade de responsabilidade limitada, quando não ocorrerem as hipóteses do art. 135 do CTN e quando os bens da sociedade forem suficientes para cobrir os débitos. (TRF 1ª Região - Apelação Cível nº 92.01.29914-1-MG, Rel. Juiz Nelson Gomes da Silva, Publicado em 21.03.1994, DJ, pág. 10.824).
“Penhora - Sociedade por quotas de responsabilidade limitada - Bens particulares dos sócios. Hipótese em que esses não respondem por dívida fiscal da sociedade, salvo se houver prática de ato com excesso de poder ou de infração de lei. Recurso não provido (TJ-SP, AI 218.822-2, Jaú, Rel. Debatin Cardoso).
Observe-se que ambas as posições estão acordes nos sentido de que não basta ser sócio para ser responsabilizado pela obrigação tributária. Mister se faz que o sócio, na qualidade de dirigente da empresa, administre bens alheios.
E mais. Estão de acordo, também, que para ser tributariamente responsabilizado, o sócio-administrador tem que ter agido com excesso de poderes ou infringido a lei, o contrato ou estatutos da empresa, nos termos do art. 135, “caput”, do CTN.
A grande celeuma instaura-se ao se tentar estabelecer quando se caracteriza o excesso de poderes, ou a infração à lei, ao contrato ou ao estatuto.
Os defensores da primeira corrente aduzem que o simples não recolhimento do tributo em época própria já configura a infração à lei apta a gerar a responsabilidade tributária dos sócios-administradores.
Contudo, “data venia”, tal posicionamento não nos parece o mais acertado.
Conforme assevera Hugo de Brito Machado, “... se o não pagamento do tributo fosse infração à lei capaz de ensejar a responsabilidade dos diretores de uma sociedade por quotas, ou de uma sociedade anônima, simplesmente inexistiria qualquer limitação da responsabilidade destes. “ (Curso de Direito Tributário, Ed. Malheiros, 12ª Edição, pág. 113).
Ora, se há disposição legal na Lei das S.A e na das sociedades de cotas de responsabilidade limitada que obrigue os sócios pessoalmente pelas dívidas da empresa, até a integralização das cotas sociais ou do capital inicial, não se pode admitir que a responsabilidade vá além do limite legal, sob pena de absoluta confusão entre o patrimônio da pessoa física com o da jurídica, consequentemente, levando-se à inutilidade da ficção jurídica.
A regra - até para ser mantida a distinção existente entre pessoa natural e pessoa jurídica - é no sentido de que os diretores, gerentes ou representantes das empresas não respondam pessoalmente pelos tributos devidos pela pessoa jurídica. E a exceção seria: praticados atos pelos administradores ofensivos à lei, ao contrato ou ao estatutos, respondem eles pessoalmente pelos tributos daí advindos.
Assim, respeitados os entendimentos discrepantes, na interpretação do art. 135 do CTN, ao nosso ver a expressão “ato praticado com infração da lei” não pode ser entendida, pura e simplesmente, como abrangente da simples omissão no pagamento do tributo.
Estamos com Hugo de Brito Machado, para quem “os atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, aos quais se reporta o art. 135, III, do CTN, são aqueles atos em virtude dos quais a pessoa jurídica tornou-se insolvente” (ob.cit. pág. 114).
Consequentemente, para que o sócio-administrador seja responsabilizado pessoalmente pelo pagamento do tributo, mister que pratique atos com excesso de poderes ou infração da lei, contrato ou estatuto, levando, ainda, a pessoa jurídica à insolvência.
Prova disso é que a jurisprudência vem se assentando no sentido de responde o sócio-administrador pelos débitos tributários da empresa que encerrou suas atividades sem regular liquidação, levando-a à insolvência em vista da presunção de apossamento do bens da pessoa jurídica (TJ/SP, Apelação Cível nº 38.217-5, São José dos Campos, Rel. Celso Bonilha).
Assim, citada a pessoa jurídica para pagamento, havendo indicação de bens da sociedade à penhora, “prima facie”, suficientes para o pagamento do débito, em hipótese alguma pode se falar em responsabilização pessoal dos sócios-administradores pelo tributo.
Já se decidiu que “a penhora, de regra, alcança os bens da pessoa jurídica executada, somente na falta destes albergando os pertencentes aos sócios administradores responsáveis substitutivamente...” (STJ, 1ª Turma, Resp. 79.500/ES, Rel. Min. Milton Luiz Pereira). E: “Ajuizada execução fiscal contra sociedade por quotas de responsabilidade limitada, a penhora deve recair em bens de seu patrimônio; só depois de comprovado que ela não tem bens suficientes para o adimplemento da obrigação pode o processo ser redirecionado contra o sócio-gerente, hipótese em que este deve ser preliminarmente citado em nome próprio para se defender da responsabilidade imputada, cuja causa o credor deve traduzir em petição clara e precisa” (STJ, 2ª Turma, Resp. nº 36.543-SP, Rel. Min. Ari Pargendler).
Ademais, parece-nos bastante claro que o ônus da prova quanto aos atos praticados com excesso de poderes ou infração da lei, contrato social ou estatutos (art. 135, III do CTN), bem como em relação à insolvência da empresa ou insuficiência dos bens nomeados à penhora por ela, é do fisco (art. 333, I do CPC), não sendo possível prosperar mera presunção de gerência ruinosa ou lesiva em virtude de prática de atos contrários à lei.
Tem cabimento à hipótese V. Aresto do Colendo Supremo Tribunal Federal, assim ementado:
“A citação do sócio como responsável tributário, nos termos do art. 592, II e 568, V, do CPC, combinados com o art. 135, I e III, do CTN, pressupõe que ele tenha exercido cargo de gerente ou diretor da sociedade por cotas de responsabilidade Ltda. e que seja responsável pela dívida ou pela dissolução irregular da entidade. A condição de sócio, desacompanhada dessas circunstâncias, autoriza o indeferimento de sua citação pedida pelo fisco” (1ª Turma, Resp. 99.959-1/MG).
Ora, “apesar de já não ter voga o princípio “in dubio pro fiscum”, o fato é que a Fazenda Pública, até hoje, com a desculpa de que precisa obter recursos e evitar fraudes, não se peja de atropelar direitos dos contribuintes” (Roque Carraza, ob. cit., pág. 259), procurando direcionar suas baterias arrecadatórias contra tudo e contra todos, ultrapassando os limites e invadindo o patrimônio da pessoa física, sem embargo do débito tributário ser de responsabilidade exclusiva da pessoa jurídica.
Em remate, vale a transcrição de trecho da célebre exortação de Rui Barbosa, ao discursar para Magistrados recém empossados: “não vos mistureis com os togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de fazendeiros. Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ou ao Estado” (Oração aos Moços, Edições de Ouro, pág. 53).