LEGÍTIMA DEFESA NO DIREITO TRIBUTÁRIO - Marcos Relvas

Advogado Tributarista responsável pelo escritório RELVAS & Associados - Advocacia Tributária;

SUMÁRIO: Introdução e histórico da questão tributária; 1. O mercado: períodos de demanda e períodos de oferta. O mercado no Brasil a partir de 1994; 2. O comportamento da questão tributária a partir de 1994. O mercado informal ampliado pela excessiva carga tributária. A pressão do mercado informal na formação do preço; 3. Princípios da capacidade contributiva e do não confisco, analisando-se a carga tributária e não apenas cada tributo individualmente; 4. O comportamento do contribuinte. Diferença entre sonegação e não pagamento em face da legislação penal tributária; 5. O princípio penal de legítima defesa aplicado ao Direito Tributário, onde o agressor ao direito natural de sobrevivência é o próprio Estado; 6. O caminho para solução: a carga tributária ideal por setor e a organização de ações coletivas.


Introdução e histórico da questão tributária 


“Só conheço duas espécies de governos: os bons e os maus. Os bons que estão ainda por fazer; os maus, em que toda a arte consiste, por diferentes meios, em passar o dinheiro da parte governada à bolsa da parte governante. Aquilo que os governos antigos arrebatavam pela guerra, nossos modernos obtêm com mais segurança pelo fiscalismo. É apenas a diferença desses meios que constitui sua variedade. Creio, no entanto, na possibilidade de um bom governo em que, respeitadas a liberdade e a propriedade do povo, ver-se-ia resultar o interesse geral, em contraposição ao interesse particular.”
Claude-Adrien Helvétius, Carta a Montesquieu (1748)


O tributos são encontrados desde a pré-história da humanidade onde a organização social exigia um custo que teria de ser pago necessariamente por alguém ou por todos.
A história do tributo é de certa forma, a própria história universal. Os impérios da Antiguidade se formaram e se mantiveram por conta da cobrança de tributos. Grécia e Roma na era clássica criaram uma força militar que nada mais faziam do que conquistarem para manter e ampliar o direito de cobrarem tributos.


Um dos marcos do direito na história do homem que é a Carta Magna de João Sem Terra na Inglaterra surgiu basicamente pela insatisfação dos Barões bretões quanto ao volume de tributos e a forma como eram cobrados. 1


Os exemplos se multiplicam ao o longo da história, contudo legislações que tratassem dos direitos e deveres dos governados sempre foram escassas pela simples razão de que quem produz leis são aqueles que estão no poder e por conseqüência os maiores interessados em apenas arrecadar sem maiores preocupações com os direitos de quem paga.


Acompanhando a universalidade da cobrança dos tributos vem a malquerência do indivíduo em paga-los gerando como conseqüência uma tensão entre os governados e governantes que somente se equilibram a medida que as normas de direito tributário se tornam mais aperfeiçoadas, contudo nunca deixando o seu caráter de obrigatoriedade e contragosto.
Dentro desse breve panorama é possível se verificar a importância dos estudos de direito tributário tanto para se conhecer as verdadeiras razões de muitos institutos jurídicos e movimentos sociais, como para se tratar com clareza e consistência crítica o controle administrativo e judicial do comportamento governamental (executivo, legislativo e judiciário) quanto às questões tributárias visando a construção de um sistema tributário justo que respeite os princípios de Direitos Humanos e as boas leis vigentes.


Como é do interesse dos governantes (classe política e classe dominante), há um desconhecimento muito grande por parte dos governados sobre seus direitos, enquanto contribuintes, associado à inflação legislativa que caracteriza o direito tributário em nosso país. A disseminação do medo (o símbolo do Leão), o crime por sonegação juntamente com a corrupção ameaçadora da fiscalização fazem com que o contribuinte se veja numa condição inferiorizada nessa relação.


É mister, portanto, e objetivo desse trabalho, além de oferecer informações sobre as questões tributárias poder contribuir para uma reflexão sobre como é possível melhorar a consciência do contribuinte a fim de que seja capaz, não de fugir ou sonegar o pagamento de tributos, mas de lutar pela sua dignidade e direito e ainda, para aqueles que fazem parte ou virão a fazer parte das estruturas estatais nunca se esqueçam que a sanha arrecadadora sem o critério do justo, do ético, do moral é fator de exclusão social e comprometimento do desenvolvimento de um país.
1. O mercado: períodos de demanda e períodos de oferta. O mercado no Brasil a partir de 1994.


Em toda a história, independentemente do sistema de governo, as relações de troca e os interesses econômicos sempre determinaram os rumos dos povos.2
Analisando a economia de forma macro, o mercado passou, ao longo da história, por períodos de maior oferta ou maior demanda, por uma série de fatores que não cabem aqui serem analisados.


Evidentemente que nos períodos de maior demanda, a possibilidade dos produtores e comerciantes definirem os preços em função de seus custos, tributos e lucros ficam bem maiores, contudo nos períodos de maior oferta a situação se inverte, uma vez que quem define ou limita o preço é o consumidor em função, principalmente de concorrência mais acirrada.
Essa mudança de comportamento do mercado ocorreu de forma bem nítida no Brasil a partir de 1994, tendo vários fatores contribuído para isso, mas sendo a estabilização da moeda como um dos principais, a medida que desmascarou empresas que viviam sob os auspícios da inflação.


Utilizamos a nomenclatura empresa, ainda que impreciso conforme o novo Código Civil, já que deveria ser sociedade ou empresário, atividade empresária, mas que contudo é mais comumente utilizado e compreendido pela maioria das pessoas.
Tínhamos, portanto, antes de 1994 um mercado comprador, margens de lucro relativamente altas, fluxo de caixa positivo, consumidor pouco exigente, não havia necessidade de alto conhecimento científico sobre administração de empresas e um nível de inadimplência relativamente baixo.


A partir de 1994 passamos a ter um mercado vendedor, margens de lucro baixas,
fluxo de caixa negativo, consumidor exigente, necessidade de alto conhecimento científico em administração de empresas e níveis de inadimplência relativamente altos.


2. O comportamento da questão tributária a partir de 1994. O mercado informal ampliado pela excessiva carga tributária. A pressão do mercado informal na formação do preço.
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a carga tributária pulou de 28,61% do PIB (1994) para 36,45% do PIB (2002), crescendo 2,48 vezes. No mesmo período, o PIB cresceu somente 1,73 vez (passou de R$ 477,92 bilhões para R$ 1,307 trilhão).3
No mesmo período a Carga Tributária per capita passou de R$ 870,91 (1994), para R$ 2.723,26 (2002), representando um aumento de 213%.4
O mercado informal no Brasil é estimado em cerca de 40%, quando na Europa e outros países desenvolvidos a média gira em torno de 0,5%.


Apenas essas duas informações já demonstram a gravidade do problema, ou seja, aquelas empresas formalmente constituídas pagam toda a conta e, dependendo da estrutura econômica que se encontram no mercado, ficam absolutamente pressionadas já que seus preços são forçados para baixo em função da concorrência desleal com empresas informais que operam desoneradas por boa parte da carga tributária e seu custo tributário cada vez maior, consumindo quase todo se lucro e reduzindo sua capacidade de investimento.
Essa situação perversa tem chegado, em alguns setores, a afetar a sobrevivência das empresas que ou trilham uma trajetória de quebra, ou passam a sonegar parte do que é devido ou migram para a informalidade, ampliando ainda mais essa distorção.


3. Os princípios da capacidade contributiva e do não confisco, analisando-se a carga tributária e não apenas cada tributo individualmente
A Constituição Federal de 1988 consagrou explicitamente em seu art. 145 § 1º o princípio da capacidade contributiva, restabelecendo norma já existente na Constituição de 1946, e foi além, estabelecendo que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios utilizar tributo com efeito de confisco (art. 150 IV).
Segundo o professor Hugo de Brito, eminente tributarista, “ o caráter confiscatório do tributo há de ser avaliado em função do sistema, vale dizer, em face da carga tributária resultante dos tributos em conjunto.”5 


É bem possível que ao analisarmos cada um dos 67 itens que compõem o nosso rol de tributos, cada um de per si não agrida a capacidade contributiva dos contribuintes, mas se aplicarmos o montante deles que cabe a cada um encontraremos resultados assustadores.
O professor Roque Antonio Carraza afirma que não se pode compelir os contribuintes a colaborar com os gastos públicos além de suas possibilidades e que é confiscatória a tributação que “esgota” a riqueza tributável das pessoas.6


“Porque constitui receita ordinária, o tributo deve ser um ônus suportável, um encargo que o contribuinte pode pagar sem sacrifício do desfrute normal dos bens da vida.”7 
A palavra CONFISCO é definida pela Encyclopaedia of the Social como : “é um princípio reconhecido por todas as nações que o direito de propriedade não pode ser transferido pela ação de autoridades públicas, de um particular para outro, nem pode ele ser transferido para o tesouro público, a não ser para uma finalidade publicamente conhecida e autorizada pela Constituição”.8


4. O comportamento do contribuinte. Diferença entre sonegação e não pagamento em face da legislação penal tributária.
Estabelecidos os paradigmas sobre o que seja capacidade contributiva e confisco com base nas limitações estabelecidas na Constituição Federal, verificamos que esses princípios constitucionais estão frontalmente agredidos pela legislação tributária brasileira.


No que tange à pessoa física é absolutamente insuportável arcar com todos os tributos indiretos incidentes sobre o consumo, as contribuições previdenciárias, o imposto de renda, taxas de toda ordem e ser obrigado a pagar novamente na esfera privada para obter saúde, educação, segurança, previdência etc já que o que é oferecido pelo Estado brasileiro é muito próximo de nada levando-se em conta a disponibilidade e qualidade do serviço.


No caso das empresas, o bordão: “se eu tiver que pagar todos os impostos corretamente eu quebro” que sempre soou como desculpa de sonegadores contumazes para se locupletar ilicitamente, hoje é realidade para muitos segmentos da economia.


Basta se analisar realisticamente os preços possíveis de serem praticados pelo mercado, conforme já exposto no item 2, considerando sua estrutura de custos e aplicando-se integralmente toda a carga tributária verificamos duas situações:


1) Lucro negativo, ou seja, a necessidade de entregar ativos da empresa para pagamento dos tributos da atividade por ela desenvolvida (sic).
2) Lucro positivo tão pequeno que inviabiliza a atividade econômica por falta de investimento em modernização para acompanhamento do mercado globalizado que se apresenta cada vez mais exigente e competitivo.
Qualquer uma da duas situações fica caracterizado o confisco com base nos paradigmas expostos no item 3.


Qual tem sido, portanto, o comportamento do cidadão ou empresário brasileiro?
A resposta somente pode seguir por quatro caminhos:


1) A empresa ou o cidadão está quebrando, empobrecendo, já que está entregando seu patrimônio para o governo.
2) A empresa ou o cidadão está sonegando para sobreviver neste ambiente.
3) A empresa ou o cidadão está inadimplente com suas obrigações tributárias.
4) A empresa ou o cidadão está praticando o chamado planejamento tributário para se esquivar legalmente da carga tributária que pesa sobre sua atividade. 


Entendemos que seja qual for o caminho escolhido pelo contribuinte nesta situação é válido e defensável, até mesmo a famigerada sonegação tão combatida inclusive por legislação penal, sobre a qual comentaremos no item 5 a seguir.
Evidentemente que não estamos aqui fazendo apologia à sonegação nem estamos falando de sonegadores contumazes que o fazem para se locupletar, como já dissemos, estamos falando de sobrevivência.


Sonegação: Caracteriza-se basicamente por meio de qualquer comportamento doloso, omissivo ou comissivo, praticado com o desígnio de reduzir total ou parcialmente a prestação tributária.9
É importante ressaltar, contudo, que há práticas modernas de planejamento tributário que permitem resultados muito mais seguros que sonegação visando a sobrevivência, caminho sempre por nós orientado, apesar de reprovado pelo fisco que reprime estas práticas com chamada norma geral anti-elisão.


E ainda, não há que se falar em crimes quando ocorre a simples inadimplência, a despeito de entendimento diverso de alguns componentes do Ministério Público, o que leva a orientação que é preferível a apuração perfeita dos tributos devidos e seu não pagamento do que a utilização de mecanismos que caracterizem a evasão fiscal.10


5. O princípio penal de legítima defesa aplicado ao Direito Tributário, onde o agressor ao direito natural de sobrevivência é o próprio Estado.


Pois bem, as condutas definidas nas leis que dispõem sobre crimes contra a ordem tributária (Lei nº 8.137/90) só serão puníveis quando praticadas com dolo, isto é, quando o sujeito ativo da conduta descrita na norma penal age querendo produzir o resultado previsto na referida norma ou assume o risco de produzi-lo. 11
Logo, não será punível a conduta que vier a produzir o fato típico descrito na lei, se ela deriva de imprudência, negligência ou imperícia, isto é, quando a conduta que produz o resultado é praticada com culpa e não com dolo. Essa interpretação decorre do disposto no parágrafo único do artigo 18 do Código Penal, o qual determina que: "salvo nos casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente".
O dolo é elemento nuclear nos tipos penais de crimes contra a ordem tributária. Não se interpreta uma lei isoladamente. A Lei que define os crimes contra a ordem tributária deve ser entendida e aplicada necessariamente com o concurso das leis penais gerais, definidas no Código Penal. Não existe uma lei penal tributária que tenha outra raiz ontológica diferente das leis penais comuns.


Outro instituto do Direito Penal é a Legitima Defesa que consiste no uso moderado dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.12 
Se a empresa está sendo agredida com os tributos confiscatórios que lhe são impostos, com afronta a princípios universais e constitucionais, colocando-a em situação que afeta sua própria existência e por conseqüência a de todos que dela dependem por sua função social, é moderado e necessário a utilização do não pagamento dessas exigências para repelir essa injusta agressão.


Com base nisso e quando demonstrado seu caráter de sobrevivência, ameaçada pelo próprio Estado, poderia ser enquadrada como Legítima Defesa a empresa que não paga os tributos devidos por ser causa excludente da antijuridicidade seu ato tipificado como criminoso.
“A razão natural permite a autodefesa contra um perigo.”13 


Portanto, para que haja crime contra a ordem tributária ou de sonegação fiscal é necessária a prática de um fato típico e antijurídico, que como foi demonstrado não se aplicam a muitas situações em que empresários brasileiros estão inseridos e são tratados não como parceiros do Estado na arrecadação dos tributos já que custeiam estruturas para promover esse processo, mas sim como sonegadores contumazes que se locupletam às custas dessa economia.
Sabemos que em regra isso não é verdade. Hoje mais de 90% das empresas e quase 70% da mão de obra empregada no Brasil está na micro e pequena empresa, cujo empresário trabalha 14 a 16 horas por dia, sem direito a férias nem licenças, paga por todos os serviços públicos de que necessita, é mal atendido pelos funcionários públicos que são chamados de “servidores”, cujos salários em muitos casos é maior do que o do micro empresário sem contar os benefícios que gozam, trabalhando de 6 a 8 horas por dia quando não são fantasmas e ainda se vêem no direito de dizer que todo empresário é sonegador.


Em nosso país a equação está invertida. O cidadão/cliente do Estado, que paga tributos para receber serviços públicos e bom atendimento, recebe um serviço de péssima qualidade em geral, quando recebe algum, e é obrigado a conviver com falta de civilidade e bom senso dos “servidores” que agem com empáfia e desprezo por aquele que paga seu salário.
É importante ressaltar aqui que não se trata de generalização, já que evidentemente há funcionários públicos altamente gabaritados, educados, competentes e cônscio de suas obrigações mas são obnubilados por uma maioria despreparada, acostumada a ver o emprego estatal de forma míope.


6. O caminho para a solução: a carga tributária ideal por setor e a organização de ações coletivas.


Hoje diante da imperativa necessidade de mudanças no sistema tributário do Brasil nos deparamos com uma oportunidade ímpar de resolver esses problemas, revendo de forma profunda o papel do Estado e da sociedade, identificando o que efetivamente cabe a cada um, procurando encontrar caminhos de eficiência e eficácia nos serviços públicos e seus respectivos custos e dimensionando a necessidade de arrecadação em função do custo desses serviços e não de estruturas ineficazes fazendo com que o Estado arrecade apenas para sustentar essas mesmas estruturas que nem sequer tem claro quais são seus objetivos.


A partir daí a busca de uma carga tributária ideal para cada setor, levando em conta a capacidade contributiva e o princípio do não confisco para que o cidadão e a empresa possa produzir de forma competitiva diante desse mundo globalizado, podendo desfrutar dos bens da vida com dignidade.
É preciso que o Estado exerça efetivamente o papel de criar políticas para distribuição de renda e isso só se dá através de uma tributação justa que sejam efetivamente destinadas a serviços importantes e possam promover a inclusão social tão propalada nos discursos de políticos que sobrevivem dessa situação.


Contudo, nada disso acontece por si nem por conta exclusiva da classe política que aí está. É preciso que haja participação, conscientização, propostas, discussões e ações organizadas, capazes de gerar movimentos poderosos que realmente possam atingir as esferas do poder reacionário que luta para ficar tudo muito próximo de como está.


Bibliografia


ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário jurídico brasileiro acquaviva.11ª ed., São Paulo: Jurídica Brasileira, 2000.
ALMEIDA, Luiz Carlos Barnabé de. Introdução ao direito econômico.1ª ed.,Cuiabá: EdUnic, 2002.
CAMPOS, Clever M.. Carta Magna. s.l: s.e., s.d.
CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário.14ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000.
SCIENCES, Encyclopaedia of the Social. v.4, New York: MacMillan, 1948
MACHADO, Hugo de Brito.Curso de direito tributário.19ª ed., São Paulo: Malheiros, 2001.
ROSA, Dênerson Dias Rosa. Prisão por sonegação. Há cadeias suficientes?, site www.tributário.com,, 2000.
JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira. Dicionário Jurídico Tributário,3ª ed., São Paulo: Dialética, 2000

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