SOBRE O “IMPEDIMENTO DA REGENERAÇÃO NATURAL DA VEGETAÇÃO”: NOTAS DE DIREITO AMBIENTAL* - Gilberto Antonio Luiz

Advogado,
Secretário-Adjunto da 115ª Subsecção da OAB/SP,
Professor de Introdução ao Estudo do Direito da Faculdade de Direito da FUNEC – Santa Fé do Sul/SP.

O IBAMA está autuando, com pesadas multas, os proprietários dos carinhosamente denominados “ranchos” na região oeste do Estado de São Paulo porque, segundo o Instituto, teriam os proprietários de ranchos “utilizado área de preservação permanente ... às margens do reservatório da UHE de Ilha Solteira, impedindo a regeneração natural da vegetação”. Fosse eu Saulo Ramos diria aos representantes do mencionado Instituto muitas e boas, mas na qualidade de modesto “rábula caipira” resta tecer algumas deslustradas razões que não foram consideradas pelo órgão ambiental.


Primeiro, uma importante observação que não foi considerada pelo órgão administrativo, ou seja, a de que o tempo exerce influência no direito. É incontestável que essa influência é poderosa na criação ou na extinção de direitos.
Dai ser milenar o axioma dormientibus non succurrit jus, enunciado latino em que se assenta o princípio da decadência e da prescrição, expressivo de que o direito não socorre, ou ampara, os descuidados, ou dorminhocos.


O direito de cobrança do Estado contra os cidadãos prescreve em cinco anos, ex vi do disposto no art. 174, do Código Tributário Nacional combinado analogicamente com o Decreto nº 29.910/32 e Decreto-Lei nº 4.597/42.
Os “rancheiros” de nossa região, adquiriram os imóveis sobre os quais construíram suas respectivas “casas” há vários anos – normalmente há mais de cinco anos – portanto, transcorreu o prazo para a autuação pretendida por este zeloso órgão ambiental.
Nós os “rancheiros” – atuais proprietários, na maioria das vezes – somos partes ilegítimas para figurarmos no pólo passivo da autuação, pois não fomos nós quem construímos as benfeitorias nas propriedades. Essas edificações foram levantadas em épocas remotas e já sofreram a incidência do tempo, inclusive juridicamente.


A nosso ver as autuações são improcedentes.


É que a Lei Federal nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, em seu art. 2º, diz, textualmente, o seguinte:


“Art. 2º Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:
(omissis)


b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água, naturais ou artificiais.”
A mencionada lei fixa as distâncias, na letra a, com relação a “rios ou de qualquer curso d’água”, sendo lacunosa, com relação à distância referente a reservatórios d’água artificiais.
Tanto isso é verdade que o CONAMA “tentando suprir a lacuna” editou a Resolução nº 302 de 20 de março de 2002 que dispõe sobre os parâmetros, definições e limites de áreas de preservação permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso de entorno, fixando, além de outros critérios, uma distância de 50 metros para a construção em área artificial.
Assim é de uma evidência solar a constatação da lacuna legislativa, que não pode ser negada!
Só que, por outro lado, a mesma não pode ser preenchida através de indevida resolução, em que pese as boas intenções do Conselho que a editou.


É que uma norma jurídica para ter validade formal (ou vigência) que é, nas palavras do insuperável Professor MIGUEL REALE a “executoriedade compulsória de uma regra de direito, por haver preenchido os requisitos essenciais à sua feitura ou elaboração”. E quais são esses requisitos? Indaga o mestre, para ele mesmo responder nas seguintes luminares palavras:
“Já vimos que o primeiro se refere à ordem das competências do poder político, à legitimidade do órgão emanador da regra. É necessário que o órgão que promulgou a regra tenha legitimidade para fazê-lo, por ter sido constituído para tal fim. A legitimidade do órgão tem que ser observada segundo dois pontos de vista diferentes:


1. legitimidade subjetiva, no que diz respeito ao órgão em si;
2. legitimidade quanto à matéria sobre que a legislação versa.”


Assim é que o CONAMA não tem legitimidade subjetiva, tampouco legitimidade para tratar da matéria, posto que o direito de propriedade só pode ser restringido por lei e não por resolução.
Outro argumento não menos relevante que torna a autuação improcedente é a de que como se trata de restrição ao direito de propriedade deve-se aplicar a menor distância prevista pelo Código Florestal, no caso, 30 metros de distância da cota máxima e não como pretende o órgão ambiental, que vem autuando em nossa região.


Assim é que “possuindo toda legislação um fim específico, a destinação da alínea a está ligada à manutenção da umidade dos cursos, prevenindo a sua extinção, e, principalmente, a queda de barrancos e encostas, prevenindo o assoreamento de seu leito. Quando a norma deseja restringir o uso de propriedade, diz o grau de intervenção; incorreto qualquer procedimento diverso. Se em um momento não diz o grau de intervenção, devemos assumir que a sua preocupação é menor neste sentido, levando-nos a assumir que, na hipótese específica da alínea b, 30 metros é o máximo permitido no caso de reservatórios (água parada)” (LUIZ CARLOS SILVA DE MORAES, Código Florestal Comentado, Atlas, 1999, p. 28 e ss.).
Como dito, no caso ora sob nossa análise, não há nenhuma metragem especificando a área de preservação, pelo que devemos tomar como correta a menor metragem presente no artigo sob comento do Código Florestal, posto que a Resolução CONAMA acima aludida não tem validade formal, como explicado alhures.


Ademais, esta a interpretação teleológica e consentânea com o Estado Democrático de Direito e isto porque: a) água parada não causa erosão, nem transporta sedimentos; b) o reservatório não é mantido pela umidade que o circunda e sim pelo nível de água defluente de cursos d’água, estes já respeitando as regulamentações do art. 2º, alínea a, números 1 a 5; c) como a lei em tela é específica em dizer a metragem quando assim acha necessário, e também descreve como infração o desrespeito a esses dispositivos (art. 26, a), imputando pena para essas condutas, devemos interpretar o presente dispositivo restritivamente, na mesma forma e modo que o direito penal exige; d) mesmo pela visão do direito civil, não seria possível outra interpretação. “A lei disciplina relações que se estendem no tempo e que florescerão em condições necessariamente desconhecidas do legislador. Daí a idéia de se procurar interpretar a lei de acordo com o fim a que ela se destina, isto é, procurar dar-lhe uma interpretação teleológica. O intérprete, na procura do sentido da norma, deve inquirir qual o efeito que ela busca, qual o problema que ela almeja resolver. Com tal preocupação em vista é que se deve proceder à exegese de um texto”. (SÍLVIO RODRIGUES, Direito Civil, 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p. 26.)


Como dito enquanto a lei continua a considerar a conduta também como crime e, portanto, ingressa a privação de liberdade no respectivo rol de sanções, não podemos abrir mão de critérios estritos de imputação de responsabilidades individuais, sob pena de ofensa a princípios garantistas do iluminismo e necessários numa sociedade democrática, apesar de reconhecermos as dificuldades, no domínio do direito penal do ambiente, de determinar-se as responsabilidades individuais efetivas.


O culto jurista acima citado continua em seus Comentários ao Código Florestal que: “Inserindo no ramo do direito público, o direito florestal, nesse aspecto, por carregar norma penal implícita, como exposto, assim deve ser interpretado, ou seja, literalmente”. Soberbo texto de CARLOS MAXIMILIANO: “395. A rubrica leis penais, aposta a este capítulo, compreende todas as normas que impõem penalidade, e não somente as que almejam os delinqüentes e se enquadram em códigos criminais. Assim é que se aplicam as mesmas regras de exegese para regulamentos policiais, as posturas municipais e as leis de finanças, quanto às disposições cominadoras de multas e outras medidas repressivas de descuidos culposos, imprudência ou abusos, bem como com relação às castigadoras dos retardatários no cumprimento das prescrições legais. Os preceitos mencionados regem, também, disposições de direito privado de caráter punitivo: as relativas à indignidade do sucessor, por exemplo, e diversas concernentes à falência. Toda norma imperativa ou proibitiva e de ordem pública admite só interpretação estrita” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 13ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 327/328.).


Nota-se, claramente, portanto, que a autoridade ambiental jamais poderia interpretar a norma legal de “forma extensiva” e de modo a restringir o direito de propriedade e o direito de construir, em evidente prejuízo para os legítimos proprietários da região e o seu desenvolvimento turístico.


Como se não bastasse o abuso das autuações, no que concerne à interpretação do art. 2º, alínea b do Código Florestal, fixando a faixa de proteção permanente em 100 (cem) metros, enquanto que a norma legal não faz esta previsão, existe outra ilegalidade a ser detectada.
É que, como se pode observar dos históricos das autuações, as condutas dos proprietários de “ranchos” que estariam em desacordo com a legislação ambiental seria a de “impedirem a regeneração natural da vegetação”.


Na realidade, inexiste nas propriedades qualquer vegetação protegida pelo art. 2º, caput, do Código Florestal, uma vez que se trata, na região, de capim braquiaria decubens, vegetação rasteira de origem estrangeira, posto que toda a região já havia, pelos desbravadores d’oeste, sido desmatada para formação de pastagens.


O eg. Tribunal de Justiça, em suas assentadas, sempre sábias, decidindo questão idêntica à presente afirmou que:


“AÇÃO CIVIL PÚBLICA – MEIO AMBIENTE – PROTEÇÃO – VIOLAÇÃO DE FLORESTA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE – LIMPEZA DE VEGETAÇÃO RASTEIRA QUE NÃO A CONFIGURA – LEI FEDERAL Nº 4.771, DE 1965 – AÇÃO IMPROCEDENTE – SENTENÇA CONFIRMADA” (RJTEST – LEX 135/209)
No mesmo diapasão a opinião de VLADIMIR PASSOS DE FREITAS e GILBERTO PASSOS DE FREITAS (in Crimes Contra a Natureza, 5ª ed., RT, 1997, p. 57), assim expressa: “... A figura contravencional fala em regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação. É necessário ser interpretada com cautela, pois, caso contrário, qualquer limpeza de um terreno, ou ato semelhante implicará em infração. Afinal, há pouco ou muito tempo, em todas as regiões de nosso território existiam florestas. A aplicação da norma deve ser adequada à realidade. Por exemplo, em local de reserva ecológica, o impedir ou dificultar a regeneração constituirá contravenção. Já o mesmo não se dará em local usado para pasto”.
De se considerar que, em nossa região, onde ocorreram as autuações, inexiste a “biota”, necessária à regeneração, posto que as pastagens impedem, por si só, a regeneração e não foi a ação daqueles que edificaram as propriedades, fator impeditivo do reflorestamento. Ninguém pode ser obrigado ao impossível, pois se abandonarmos a beira dos “grandes lagos” jamais haverá, infelizmente, o pretendido reflorestamento e ninguém pode nos obrigar a reflorestar (a fazer alguma coisa, senão em virtude de lei).


Por fim, ainda há considerações jurídicas sobre a questão urbana dos loteamentos serem de competência municipal – a legislação e fiscalização dessas áreas – também o fato de que quem “destruiu a natureza” foi a CESP que “botô” hidrelétrica aonde “deslizava o rio ponte pensa”, mas que deixo para outros colegas para não me tornar cansativo, lembrando somente que o direito é fato, valor e norma, da teoria tridimensional do direito, de MIGUEL REALE e qualquer visão unitária sobre o assunto é estrábica.


O direito de intervenção, na seara ambiental, consentâneo com as observações acima, deve necessariamente observar as principais características apontadas por WINFRIED HASSEMER, Juiz da Corte Constitucional da Alemanha: “1) deve atuar preventivamente; 2) não poderá dispensar os mecanismos de imputação individual; 3) dispor de um catálogo de sanções rigorosas como decretar a dissolução de entes coletivos, por exemplo; 4) deverá estar preparado para atuar globalmente e não isoladamente; 5) deverá ficar reservada apenas uma função ancilar, de caráter flanqueador, destinada a dar cobertura a determinadas medidas de proteção ambiental e 6) prever obrigações de minimizar o dano”. (destaques nossos) (in Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, ano 6, 1998, nº 12, p. 225/228.)

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