AUTONOMIA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO - Bruno Machado Miano
Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas de Itapetininga (SP) - FKB
SUMÁRIO: I - Preliminares; II - A autonomia dos títulos de crédito: II.a - Disposições gerais; II.b - Conceito de autonomia; II.c - Algumas distinções: autonomia e abstração e autonomia e independência; II.d - Aspectos da autonomia dos títulos de crédito: II.d.1 - O duplo aspecto da autonomia; II.d.2 - A inoponibilidade das exceções pessoais extracartulares frente ao terceiro de boa-fé; II.d.3 - A transferência "a non domino"; III - Conclusão; IV - Legislação pertinente; V - Bibliografia
consultada.
I - Preliminares
"A atividade econômica, além de geradora de muitas riquezas, descobertas, acontecimentos de destaque na vida do espírito, teve também sua própria história: as etapas que percorreu para atingir o apogeu em que se encontra atualmente, quando o mundo inteiro apresenta-se como uma só sociedade ou caminha a passos rápidos para isso, estreitados os laços da convivência humana entre os povos. Essa história passa necessariamente pelo surgimento de um fator que foi fundamental para o progresso comercial e técnico e que se chama crédito."
Aramy Dornelles da Luz
Inegável é a importância do crédito na história do homem. Para isso basta uma rápida retrospectiva em suas relações econômicas.
A princípio, nos primórdios de nossa civilização, toda relação econômica movia-se com base na troca, no escambo. Trocavam gado por porco, galinha por pano, sal por açúcar. Mais tarde, porém, perceberam o interesse comum das pessoas em dados bens, que passaram a servir como base das trocas, como produtos de intermediação. Foi o que se deu com o sal, com o gado, com argolas, fios e bambus. Não demorou muito e chegamos à fase do metalismo, na qual ouro, prata e bronze eram utilizados para servir como instrumentos de troca por todos aceitos.
Desse período à fase monetária foi um pulo. Criava-se o dinheiro, o instrumento de troca por excelência, que, no dizer de Carvalho de Mendonça " é a mercadoria por todos voluntariamente aceita para desempenhar as funções intermediárias nas aquisições de outras mercadorias e na obtenção de serviços indispensáveis, satisfazendo as necessidades humanas no convívio social; é, ainda o meio normal de pagamento." 1
Porém a evolução dos instrumentos de troca não parou por aí, pois a engenhosidade humana, frente às necessidades que surgiram, criou uma "nova moeda", que permitiria trocar dinheiro presente por dinheiro futuro. De fato, fruto do intelecto do homem, surgiu o crédito.
Resta, no entanto, saber: o que vinha a ser tal instituto e para que serviria? Comecemos pela segunda pergunta: serviria para suprir a ausência de dinheiro de certas pessoas. E só. Situações surgiram em que certo indivíduo não tinha capital disponível naquele momento para concluir dado negócio, mas o teria futuramente. Com base nisso, geralmente o outro contratante dava-lhe um crédito, isto é, acreditava em sua palavra e concluía o negócio tendo em vista o dinheiro futuro. Ou outrem lhe emprestava a quantia necessária para depois recebê-la. Era, como ainda o é, baseado, pois, na confiança, na crença na palavra do outro (daí também a origem etimológica da palavra, que, segundo Requião, vem de "credere", de "creditum", ato de confiança, fé, crença. 2).
Por isso é o crédito conceituado como "a confiança que uma pessoa inspira à outra cumprir, no futuro, obrigação atualmente assumida." 3
Não pára aí, entretanto, a evolução da vida econômica humana. Pautados pela cautela jurídica, a fim de, se necessário fosse, produzir provas em juízo, os sujeitos da relação de crédito passaram a consignar tais obrigações - geralmente pecuniárias - em documentos, cártulas. Surgiram, então, esboços dos títulos de crédito.
Por que esboços?
Esboços porque embora possibilitassem a útil troca de dinheiro presente por dinheiro futuro, não podiam ser tais documentos utilizados como "moedas", isto é, não operavam com facilidade as trocas entre bens, uma vez que eram vinculados ao negócio que lhes dera causa, não podendo ser transferidos pela simples
"traditio".
Explicando melhor: tais títulos a princípio eram como confissões de dívida (aliás, assim eram chamados muitos deles) e, para poderem ser transferidos a outrem, exigiam a cessão de crédito. Nada mais desvantajoso para o mundo célere do comércio, dada a complexidade e a insegurança provocadas por tal instituto civil, uma vez que, por meio dele, poderiam ser opostas exceções de caráter pessoal ao cessionário, que não via vantagem em receber tal direito creditório, expresso no documento, como forma de
pagamento.
Ou seja, aquele título, que ficava com quem deu o crédito (o credor) era praticamente inegociável, tantos eram os percalços que sua regulamentação jurídica provocava. Desse modo, dificilmente poderia o credor transformar tal documento em "capital de giro". Afinal, quem os receberia, sabendo que o devedor (aquele que recebeu o crédito e por ele deveria pagar) poderia opor-lhe exceções referentes ao antigo credor?
Assim, o crédito não tinha grande função prática senão na relação em que havia sido originado, na qual permitia, repita-se, a troca de dinheiro presente por dinheiro futuro. Porém não podia tal título ser transferido a outrem de forma rápida, por estar vinculado à causa originária de sua existência. Não servia, pois, como útil instrumento de troca, como forma de pagamento.
Eram tais títulos, como já foi dito, quirógrafos comuns, meramente probatórios do direito ao crédito oriundo dos contratos (por isso havia a necessidade, para efetuar-se sua transmissão, da cessão de crédito). Ainda não eram tais documentos constitutivos de direitos creditórios, posto que esses não eram independentes de sua causa e das relações anteriores entre seus possuidores. Em suma, o documento ainda não constituía, por si só, de maneira autônoma, o direito ao crédito nele mencionado.
Com relação a esse período relata-nos Waldemar Ferreira que "esses entraves para a circulação de tais títulos se fizeram sentir sobremodo no mundo dos negócios. Havia a necessidade de suprimir a exigência da causa para que eles se pudessem transmitir." 4 E complementa: "Para o homem de negócios, nada de maior utilidade haveria do que obter certificado ou título que pudesse transferir, com a mesma facilidade que qualquer bem móvel, e lhe conferisse direito próprio, justificado pela exibição do título à prestação, nele de qualquer maneira incluída, sem necessidade de fazer descer sua perquirição até o credor primitivo, em cujos direitos se houvesse investido." 5 (o grifo é nosso)
Dessa crescente necessidade de transferir os títulos, que consignavam o direito creditório, sem a indagação de sua causa originária, a fim de proporcionar ao adquirente a certeza de ser seu direito desvinculado das anteriores relações em que foi inserido o título, surgiu, como construção doutrinária e prática, duas características essenciais para o sucesso atual dos títulos de crédito: a abstração e a autonomia. É dessa última que passaremos a falar.
II - A Autonomia dos Títulos de Crédito
"Transmissibilidade rápida, penetração do direito no título e, por isso mesmo, independência respectiva de todo portador, eis os atributos dos títulos de crédito, eis o que lhes fez a fortuna."
Edmond Thaller
Vê-se, do exposto, a importância da aut
onomia como fator de segurança das relações econômicas travadas por meio de títulos de crédito.
Adquirindo tal característica, os títulos de crédito não mais propiciavam a seu adquirente "surpresas" desagradáveis, como a de não poder exercer o direito nele expresso devido a exceções pessoais que o devedor lhe opunha (como ainda ocorre na cessão de crédito). Se estivesse de boa-fé, poderia sim, exercitar seu direito creditório, posto que o direito constituído na cártula é autônomo, independe das relações entre seus anteriores possuidores. É como se, ao se adquirir de boa-fé um título de crédito, fizesse-se tabula rasa de todas as relações anteriores que o envolveram.
Ademais, se um indivíduo adquirisse um título, de boa-fé, de alguém que não tinha legitimação para transferi-lo, no passado estaria fadado a ter de suportar os prejuízos provenientes de tal negócio. Com a caracterização dos títulos de crédito como autônomos, porém, o direito mencionado em tal documento poderá, sem dúvida, ser exercido, posto que ele constitui seu possuidor como credor da obrigação nele consignada, independentemente de seus anteriores possuidores.
Percebe-se, dessarte, a importância - até mesmo vital - da autonomia para a segurança, para a certeza, da realização do direito mencionado nos títulos, fazendo deles instrumentos confiáveis para mediação na troca, aceitos sem maiores ressalvas por todos que com eles se deparam no dia-a-dia econômico.
Conceito de autonomia
"As obrigações cambiais são autônomas e independentes umas das outras. (...)"
(Art. 43 do Decreto n.º 2.044, de 31 de dezembro de 1.908.)
Autonomia é, em síntese, a característica dos títulos de crédito que permite a seu possuidor de boa-fé o exercício pleno do direito creditório neles mencionado, independentemente das relações entre seus anteriores possuidores e o devedor, e da titularidade de quem lhe transferiu o título, por ser o direito nele expresso constitutivo, gerador, pois, de uma nova relação jurídica, que é, autônoma...
Ou, de maneira mais precisa, é a característica que faz do direito cartular um direito auto-governável, independente de qualquer outro requisito, que não formal, para ser exercido.
Algumas distinções
Nossos mais renomados comercialistas, tais como Rubens Requião, Waldirio Bulgarelli, Aramy Dornelles da Luz e Fran Martins, distinguem de maneira clara a autonomia da abstração e da independência, não confundindo caracteres tão díspares de modo algum, no que, aliás, fazem bem. Dessarte, para eles, a autonomia é um essencial requisito para a caracterização dum título de crédito, diferentemente da abstração e da independência, que faltam a algumas cártulas, como à duplicata e às ações das Sociedades Anônimas. Por isso, cumpre diferenciá-las.
Autonomia e Abstração.
Um título é autônomo quando o direito por ele constituído, para ser exercido, independe das relações entre seus anteriores possuidores e o devedor, sendo defeso a este obstar ao terceiro de boa-fé a consecução do direito com base em direitos pessoais que possuía com o credor originário ou com algum dos endossatários (se houver), bem como independe da legitimação de quem lho transferiu tal documento, desde, óbvio, que o adquirente tenha agido de boa-fé. Como bem resume Amador Paes de Almeida, "cada obrigação que se estabelece é autônoma com relação às demais."
É abstrato o título que, para ser exigido, independe da relação que lhe deu origem 6, isto é, independe de sua causa. Pode pensar então o atento leitor: mas a causa do título não é aquela já aventada, da necessidade de dinheiro presente por dinheiro futuro? Não foi por isso criado o crédito? Não têm, então causa tais títulos?
Razão temos de dar a tal leitor. Porém, como ensina de maneira magistral Waldemar Ferreira, "Causa certamente têm eles. Necessidade de dinheiro futuro por dinheiro presente pode tê-los criado ou levado a negociarem-se; mas isso, como é óbvio, fora dos títulos. Eles se libertam de suas causas a fim de poderem ingressar, por si sós, no mundo econômico. Ninguém os adquiriria se tivesse de indagar de sua procedência. Há abstrair dela para esse efeito. Nesse sentido reputam-se abstratos, a despeito de sua existência real, documental, literal, formal." 7
Entendido?
Autonomia e Independência.
Essa distinção é fácil: título de crédito independente é aquele que, para ser exercido, não depende de outro documento, pois existe por si só. É o caso, por exemplo, da letra de câmbio e da nota promissória. Já títulos há que estão estritamente vinculados a outros documentos, quer por vontade expressa das partes contratantes do negócio originário, quer por força da lei, ou ainda por "resultar da própria substância e conformação do negócio e do título" 8 como as ações das S.A., que se fundam e se vinculam ao ato de constituição de tal sociedade mercantil.
Por fim, um ponto a ser observado quanto à independência dos títulos de crédito é o concernente à necessidade da precisão terminológica. Ora, se dissermos que o direito creditório é independente, estamos, em verdade, dizendo ser ele autônomo, posto que ele não depende das relações anteriores ... O que é independente, no sentido de não precisar de outro documento que o acompanhe, é o título, a cártula. Essa, quando independente, vale por si só, desde que preenchidos seus requisitos formais.
Aspectos da autonomia dos títulos de crédito
"São, portanto, duas situações inteiramente distintas. Uma completa a outra, é verdade, em termos de proteção ao terceiro possuidor do título, mas a proteção se dá em dois sentidos diferentes."
Newton de Lucca
Começa aqui o tormento da matéria em estudo. De fato, omissões e divergências fazem desse assunto algo de difícil entendimento e complexa justificação.
Em nossa doutrina pátria, poucos são os que discorrem a respeito do duplo aspecto da autonomia dos títulos de crédito, enxergado pelo jurista italiano Tulio Ascarelli há mais de cinqüenta anos. Requião, Fran Martins, Amador Paes de Almeida e Bulgarelli, por exemplo, nas páginas de suas obras discorrem magistralmente a respeito da inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé, porém nada falam a respeito do segundo aspecto da autonomia, a transferência "a non domino".
Poucos autores, como se vê, discorreram a respeito desse outro aspecto, o que torna dificultosa a tarefa de falar sobre tal assunto de maneira científica e sistemática. Tentemos, entretanto...
O duplo aspecto da autonomia.
Visto já foi ser a autonomia uma característica que faz do direito creditório um direito auto-governável, ou melhor, um direito exercitável por si mesmo, independentemente de qualquer outro requisito, que não seja formal.
Assim, da aplicação da autonomia dos títulos de crédito na vida prática, decorre duplo efeito frente às pessoas envolvidas no negócio jurídico cambiário (o devedor, o terceiro de boa-fé, o credor originário e, se houver, o endossante transferidor da cártula): a inoponibilidade de exceções pessoais e a posse adquirida pela transmissão efetuada por alguém que não era dono.
1.º aspecto: a inoponibilidade das exceções pessoais extracartulares frente ao terceiro de boa-fé
"A inoponibilidade das exceções fundadas em direito pessoal do devedor contra o credor constitui a mais importante afirmação do direito moderno em favor da segurança da circulação e negociabilidade dos títulos de crédito."
Rubens Requião
Vimos que a autonomia surgiu em decorrência da necessidade de se dar segurança e confiabilidade às relações cambiárias, não permitindo que ao portador do título, no momento de seu adimplemento, pudessem ser opostas exceções de caráter pessoal do devedor com os portadores anteriores da cártula.
É a esse mecanismo de se fazer com que caiam por terra as objeções pessoais que o devedor justapunha ao direito do adquirente, fazendo não somente esse sofrer grave prejuízo, como também toda a estruturação jurídica dos títulos de crédito, que denominamos inoponibilidade das exceções pessoais extracartulares frente ao terceiro de boa-fé.
Vejamos de maneira mais detida.
Interessa ao Direito Comercial, e, principalmente, à sociedade, a utilização dos títulos de crédito, posto que esses são grandes transferidores de riquezas, o que proporciona desenvolvimento e, conseqüentemente, bem estar. Assim, necessário se faz proteger o indivíduo que adquire um título de crédito, sem ter participado da relação jurídica fundamental que o criou. Necessário se faz resguardá-lo das circunstâncias pessoais atinentes àquela relação.
Não seria justo permitir que o devedor da obrigação consignada no título pudesse opor ao portador, terceiro DE BOA FÉ, as exceções de direito pessoal que contra o credor originário (isto é, aquele da relação jurídica fundamental, para quem foi passado o título) pudesse ter (por exemplo, se tivesse o devedor um crédito em relação a seu credor, ou a circunstância de já ter pago o título - Note-se que tais relações são todas extracartulares, pois não estão expressas na cártula. Se nela tivessem sido escritas, óbvio que seriam oponíveis, então, as exceções, em decorrência mesmo da literalidade do título de crédito).
Dessa situação indesejável e injusta, pois, surgiu o princípio da inoponibilidade das exceções que Tulio Ascarelli, de maneira clara e precisa acabou conceituando, ao dizer, desse aspecto, "que não podem ser opostas ao subseqüente titular do direito cartular as exceções oponíveis ao portador anterior, decorrentes de convenções extracartulares, inclusive, nos títulos abstratos, as causais..." 9
É aí, nessa simples frase do jurista italiano, que está toda a essência do princípio da inoponibilidade das exceções pessoais extracartulares frente ao terceiro de boa-fé, resumindo tudo que dissemos até aqui.
Do fundamento da inoponibilidade das exceções
E em que, cientificamente falando (a proteção ao terceiro é uma razão eminentemente política), baseia-se tal princípio da inoponibilidade?
Fundamenta-se tal princípio no fato de ser o direito cartular constitutivo, isto é, o direito oriundo da cártula é próprio, por si só constitui, com o portador de boa-fé, uma nova relação jurídica, autônoma em relação às demais que a precedem. Não deriva, pois, tal direito, da relação anterior, sendo por isso vedada as exceções a esta concernentes.
Exceções inoponíveis e oponíveis
Resta, para encerrarmos esse aspecto, responder uma última pergunta: todas as exceções, feitas ao terceiro de boa-fé, são inoponíveis?
Não.
São inoponíveis as exceções de caráter pessoal que não estejam na cártula. Assim, a contrario sensu, as exceções referentes a requisitos formais do título são perfeitamente plausíveis, até porque podem ser percebidas pelo próprio adquirente do documento creditório.
Também não o são as exceções resultantes de relações pessoais diretas do devedor com último portador, acaso haja alguma; bem como aquelas exceções pessoais constantes na cártula, pela razão acima exposta.
Do portador de má-fé
Agora, como nos alerta Requião, "Se, todavia, o adquirente do título agir de má fé, estando, por exemplo, conluiado com o portador anterior, a fim de frustrar o princípio da inoponibilidade da exceção de defesa que contra ele tivesse o devedor, este tem o direito de opor-lhe a defesa que teria contra o antecessor." 10
Requisitos para aplicação do princípio
A fim de procedermos a um apanhado geral do até aqui exposto a respeito desse aspecto da autonomia, convém enumerarmos os requisitos necessários para sua argüição:
a) portador de boa-fé;
b) sejam as exceções:
b.1) de caráter pessoal;
b.2) extracartulares;
b.3) referentes a negócios do devedor com os demais antecessores do escrito.
2.º aspecto: a transferência "a non domino"
Por fim, tratemos da transferência efetuada pelo indivíduo que não tinha legitimação para fazê-lo. Seria justo, nesse caso também, prejudicar o terceiro de boa-fé? Constitui o título, em tal situação, uma nova relação jurídica?
De fato, não seria justo permitir o prejuízo do terceiro de boa-fé, até porque aquele que se obrigou, ao subscrever sua assinatura no título, obrigou-se a credor determinável, tanto lhe fazendo seja fulano ou sicrano o beneficiário da obrigação.
Assim, também não podem ser opostas ao terceiro de boa-fé, exceções referentes a falta de titularidade daquele que lhe transferiu o título, mesmo tendo sido este extraviado ou roubado. É o que nos explica, novamente, Tulio Ascarelli, ao dizer: "segundo um outro significado, ao falar em autonomia, quer-se afirmar que não pode ser oposta ao terceiro possuidor do título a falta de titularidade de quem lho transferiu..." 11
Dessa maneira, como inteligentemente nota Aramy Dornelles da Luz, "Não é aplicável, portanto, ao direito cartular o princípio segundo o qual ninguém pode transferir mais direitos do que tem...", porque, no caso do portador de boa-fé "é a relação de propriedade sobre a coisa que determina a titularidade do direito." Assim, ainda conforme esse mesmo autor, "O direito pessoal de crédito é indestacável do direito real existente sobre a coisa, de sorte que o possuidor da 'res', portador da presunção de ser possuidor de boa-fé, ostenta aparência de bom direito de ser o proprietário, até prova em contrário." 12
Embora já tenhamos feito bastantes citações no que concerne a esse assunto, convém concluirmos com o mestre Waldemar Ferreira, que nos diz, dos efeitos da transferência "a non domino": "Pouco importa a falsidade, falsificação ou nulidade da obrigação anterior. O possuidor de boa-fé pode sempre exigir a prestação de quantos, validamente, hajam nos títulos intervindo. Esse direito é cabalmente exercitável e inatingível pelas exceções que o devedor poderia opor contra os possuidores, pessoalmente." 13
III - Conclusão
Vimos, nessas poucas linhas, a complexidade de um assunto que, quer de maneira direta, quer de modo transverso, tem sido recorrente nos Tribunais de nosso país, servindo para a justa resolução dos litígios que vão em massa se formando.
Mas, mais que isso, pudemos perceber, de maneira clara, o fundamento que tem validado a autonomia dos títulos de crédito como instrumento útil à circulação de riquezas: a proteção dada ao terceiro de boa-fé, como princípio indelével e imprescindível da mais verdadeira Justiça.
IV - Legislação pertinente
Decreto n.º 2.044, de 31 de dezembro de 1.908
Art. 43. As obrigações cambiais são autônomas e independentes umas das outras. O signatário da declaração cambial fica, por ela, vinculado e solidariamente responsável pelo aceite e pelo pagamento da letra, sem embargo da falsidade, da falsificação ou da nulidade de qualquer outra assinatura.*
Art. 51. Na ação cambial, somente é admissível defesa fundada no direito pessoal do réu contra o autor, em defeito de forma do título e na falta de requisito necessário ao exercício da ação. *
Lei Uniforme de Genebra
Art. 7.º. Se a letra contém assinaturas de pessoas incapazes de se obrigarem por letras, assinaturas falsas, assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que por qualquer outra razão não poderiam obrigar as pessoas que assinaram a letra, ou em nome das quais ela foi assinada, as obrigações dos outros signatários nem por isso deixam de ser válidas.
Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor. *
* O grifo é nosso.
V - Bibliografia consultada:
1) ALMEIDA, Amador Paes. Teoria e Prática dos Títulos de Crédito, ed. Saraiva, 18.ª ed., 1.998;
2) BULGARELLI, Waldirio. Títulos de Crédito, ed. Atlas, 13.ª ed., 1.998;
3) COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial, ed. Saraiva, 9.ª ed., 1.997;
4) FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial, vol. 8, ed. Saraiva, 1.962;
5) LUCCA, Newton. Aspectos da Teoria Geral dos Títulos de Crédito, Editora Livraria Pioneira;
6) LUZ, Aramy Dornelles. Para uma fácil compreensão dos títulos de crédito, ed. Saraiva; e
7) MARTINS, Fran. Títulos de Crédito, vol. I, ed. Forense, 13.ª ed., 1.999.
Nota: Data da última atualização: 11.02.2001